Público (terça-feira, 04 Setembro 2012)
“Digo-vos olhos nos olhos: o nosso país não é um país corrupto, os nossos políticos não são políticos corruptos, os nossos dirigentes não são dirigentes corruptos. Portugal não é um país corrupto.” As palavras são da procuradora-geral adjunta e directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Cândida Almeida, durante a Universidade de Verão do PSD. A magistrada não se ficou porém por aqui e sublinhou em diversos matizes a ideia de que, em Portugal, “a corrupção é residual”, apesar de haver uma “percepção” de uma elevada incidência de corrupção, devido ao sensacionalismo da comunicação social, a figuras públicas que falam de corrupção com base em rumores sem fundamento e a relatórios como os da organização Transparência Internacional que, mais uma vez, se referem a percepções dos cidadãos e não a casos provados de corrupção.
Se há pessoa em Portugal que deve perceber de corrupção é Cândida Almeida.
Se há pessoa cuja profissão lhe permite estar informada de todos os pormenores de todos os casos reais ou suspeitados de corrupção é esta. E, por tudo o que sabemos de Cândida Almeida, não temos nenhuma razão para imaginar que tenha razões ocultas para nos mentir. E no entanto… não conseguimos acreditar numa palavra do que nos diz. Percepções. Mais: a própria Cândida Almeida sabe que aquilo que nos diz não é credível.
Como é que se vê isso? São aqueles recursos retóricos, os “olhos nos olhos”, a repetição enfática das palavras. Além de que a própria procuradora confessa mais à frente que veria com bons olhos alterações legislativas de modo que o Ministério Público pudesse comparar as declarações de património entregues no Tribunal Constitucional pelos detentores de cargos políticos com “o património que estes efectivamente detêm”. Para quê, se “os nossos políticos não são corruptos”? Mas a procuradora fez mais e especificou que, muitas vezes, quando se fala de corrupção dos poderosos, se está a falar de facto de fraude fiscal, que é algo completamente diferente. E deu um exemplo: muita gente pensa que a Operação Furação se refere a corrupção, quando aquilo que investiga é, na realidade, um caso de fraude fiscal. Não tem nada a ver!
E aqui as coisas clarificam-se: Cândida Almeida, jurista e magistrada, está de facto a referir-se a uma definição jurídica de corrupção, precisa e específica, estreita e formal, daquelas que vêm nos códigos penais, e não à corrupção como a entendemos na linguagem de todos os dias, em português, nas conversas, nas discussões, na actividade política. Cândida Almeida fala de uma corrupção (o itálico aqui quer dizer, como teria dito Eduardo Prado Coelho, “uma corrupção outra”, que não é “a corrupção”) que eu não faço a mínima ideia do que seja nem estou particularmente interessado em saber porque não tem o sentido prático e ético que nos interessa a nós, cidadãos, quando a usamos no debate político. A acepção judiciária em que Cândida Almeida usa a palavra servirá para ver, no catálogo das penas, qual se deve aplicar quando se prova em tribunal que alguém abusou de um cargo público, se abotoou com bens públicos ou desviou bens públicos para benefício próprio, do primo, do partido ou do banco que lhe vai dar emprego quando sair do Governo. Mas não é a acepção comum, que define corrupção de forma mais ampla, como desonestidade, como falta de integridade, como imoralidade, como roubo, como desvio e não apenas como um acto mas como uma cultura. A corrupção que eu e muitos outros sentimos (sim, uma percepção) no “arco do poder” em certos casos nem sequer é ilegal. É o caso dos deputados que são ao mesmo tempo advogados e consultores dos mais variados interesses, que foram eleitos pelo povo para defender a causa pública e que estão no Parlamento para defender interesses privados. Legal. Mas corrupção.
É a corrupção da democracia. É o caso dos políticos que no Governo fazem favores às empresas que depois os compensam da sua lealdade contratando-os quando saem do Governo. Legal. Mas corrupção. Ou melhor: percepção de corrupção. É o caso das obras inúteis ou dos empréstimos contraídos a juros agiotas para benefício de construtoras e bancos em prejuízo do erário público. É o caso da venda a preço de saldo de empresas públicas para benefício das empresas compradoras. É difícil de provar que haja intenção de obter benefício próprio e dos amigos? Pode tratar-se de uma opção ideológica? Pode.
Há de facto uma opção ideológica que consiste em roubar o Estado, distribuir as riquezas roubadas pelos amigos mais ricos e tentar reduzir os mais pobres à inanição e à passividade. Mas o verdadeiro nome disto é corrupção.
Ainda que o PSD, o CDS e uma parte do PS nos andem a tentar convencer que isso se chama política. Não chama. A política é a generosidade da polis, da coisa pública. Esta gestão de fortunas que o Governo faz chama-se (desculpe, Cândida Almeida) corrupção. E existe. Escreve à terça-feira
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