De repente, a questão do rigor e da verdade das
linguagens política e jurídica parece ter ganho algum relevo social
1. Pouco após ter enviado para publicação o meu último texto, fui
surpreendido por um conjunto de artigos que abordavam o mesmo tema: a actual
reorientação de conceitos políticos e jurídicos no discurso público.
O mais desenvolvido e esclarecedor dos que li é, sem dúvida, o de
“El País” de 1 de Setembro: “La Ocupación del Lenguage”. Nele se procura
desvendar como a usurpação da terminologia dos oponentes políticos desempenha,
no cenário político espanhol, um papel fundamental na legitimação e na
conquista da hegemonia cultural por parte das teses neoliberais.
No âmbito nacional, Betâmio de Almeida disserta, no “Público” de 2
de Setembro, sobre o uso e abuso do termo “regabofe”. Pretende o autor que, não
se identificando o alvo da utilização de tal conceito, a acusação difusa e
ambígua que ele pressupõe, sendo universalizada, pode tornar-se potencialmente
cruel, pois atinge, no essencial, os cidadãos que não são os reais responsáveis
pela crise actual. Dias depois, Vítor Malheiros, no “Público” de 4 de Setembro,
disseca a relevante diferença entre o estrito conceito jurídico de corrupção e
a mais ampla noção que dela tem a sociedade.
No dia seguinte, aqui no i,
Rosa Ramos desenvolve o tema. De repente, a questão do rigor e da verdade das
linguagens política e jurídica parece ter ganho algum relevo social.
2. George Orwell, antevendo embora os objectivos políticos da
manipulação da linguagem num tipo de sociedade diferente, descreveu, no romance
“1984”, os efeitos do condicionamento social alcançados pela introdução gradual
do “duplopensar” e da “novilíngua”.
A concomitância de um tão grande número de artigos sobre o tema,
que aparecem em jornais de diferentes países europeus, devia alertar-nos para
uma condicionante real que arrisca conseguir confundir e redefinir os contornos
do debate político e cívico europeu.
Uma característica comum ressalta: a necessidade sentida pelo
discurso público dominante de, através de conceitos generosos de ideologias que
se querem combater e de outros propositadamente difusos e pouco esclarecedores,
não revelar, afinal, a verdade toda sobre os propósitos genuínos das medidas
políticas que se querem promover.
No fundo, parece temer-se que os cidadãos – agora apresentados
apenas, ora como “contribuintes”, ora como “consumidores”, ora como integrantes
das “famílias”, e nunca como sujeitos próprios e titulares individuais de um
estatuto político e jurídico no seio da comunidade nacional – não aceitem como
boas as ideias de um liberalismo radical que desestrutura e restringe, até à
anulação, o seu estatuto jurídico e constitucional.
É, de facto, um estranho liberalismo o que nega a individualidade
e integralidade política de cada homem e apenas lhe reconhece “qualidades”
sectoriais que nunca quer ver reunidas numa dimensão jurídica constitucional
harmónica. Tal sectorização impede a sua necessária margem de liberdade e
autonomia – a única que lhe possibilita a sua identificação com a “cidadania”
de uma república regida pelo direito.
Desenquadrados da “cidadania”, essas outras “qualidades”
sectoriais são, de facto, inócuas: podem ser escritas e reescritas tantas vezes
e de tantas formas quantas se mostrarem necessárias para o poder e os
interesses económicos prevalecentes.
Era essa “flexibilidade” – esse “duplopensar” – a qualidade
política da “novilíngua” que o Big Brother se propunha explorar para
condicionar a nova sociedade.
Jurista e presidente da MEDEL
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