Por: FernandaPalma, Professora Catedrática de Direito Penal
Existe uma liberdade de expressão
acima da qual nenhum direito merece proteção? Este problema subjaz à reação do
Ocidente ao filme sobre Maomé que desencadeou a violência em vários países
islâmicos. Se as correntes islâmicas radicais pretendem silenciar qualquer
crítica, há meios ocidentais que encaram a liberdade de expressão como direito
absoluto.
No caso do filme divulgado na
internet, esses meios sustentaram a ausência de limites para a liberdade de
expressão. Assim, abstraíram das consequências, que puseram em causa os
esforços mais recentes de diálogo entre civilizações, e não consideraram
relevante que muitos milhares de islâmicos se sentissem injuriados (o que até
pode ter sido pretendido).
Se, perante
a situação explosiva que atravessamos, alguns insistem em exibir o filme mesmo
sabendo que é uma obra execrável e destinada a injuriar islâmicos, então
estamos perante a afirmação de um direito absoluto. Tratar--se-á, pois, de algo
idêntico, pela sua natureza, a um fundamentalismo religioso, que não admite
qualquer contraditório ou rivalidade.
É verdade
que as pessoas que praticaram os atos de violência terríveis a que todos
assistimos – por causa ou com o pretexto do filme – não têm qualquer
justificação. Não são manifestantes a exprimir os seus legítimos pontos de
vista, mas sim criminosos que devem ser responsabilizados pelas suas condutas:
ameaças, ofensas corporais e homicídios.
Todavia,
aqueles que persistem em ridicularizar ou denegrir as bases de uma religião,
sem afirmar qualquer valor cultural ou artístico, violam dois princípios
básicos da sociedade democrática. Põem em causa a dignidade de pessoas em
função da sua religião e a própria liberdade de expressão, na medida em que a
desmaterializam e convertem num fundamentalismo.
Se a
liberdade de consciência é inviolável, a liberdade de expressão está sujeita,
em Democracia, a conflitos com outros direitos fundamentais, como o bom nome, a
reserva da intimidade ou a liberdade religiosa. Esses conflitos devem ser
dirimidos salvaguardando sempre o núcleo essencial dos direitos em jogo, tal
como prescreve o artigo 18º da nossa Constituição.
É duvidoso
colocar no mesmo plano uma obra de arte e aquilo que se limita a ser um produto
ofensivo. Entre o filme sobre Maomé e os ‘Versículos Satânicos’ de Salman
Rushdie ou ‘A Última Tentação de Cristo’ de Martin Scorsese vai uma distância
abissal: a distância que separa o exercício do direito de expressão artística
de uma mera provocação.
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