Apesar de magistrado, não me tinha verdadeiramente apercebido da importância que a existência física do Estado e da lei podiam revestir para um cidadão desprotegido
Os policiais de Donna Leon, transmitem, com argúcia, os aspectos mais sensíveis da vida quotidiana das sociedades modernas, em especial da italiana, e as contradições de quem tem de as viver e de nelas sobreviver.
Em “The Girl of His Dreams”, uma das personagens, um antigo missionário no Congo, diz a dado passo: não acredito que as pessoas aqui (em Veneza), com normas legais e polícia, carros e casas, façam qualquer ideia do que é viver inteiramente sem lei.
Tive essa experiência na pequena cidade de Anapu, situada em plena selva amazónica brasileira.
Integrei, faz anos, uma missão de observação da FIDH ao inquérito sobre o assassinato, por pistoleiros a soldo, de uma freira norte-americana que pertencia à organização católica Pastoral da Terra. Lutava ela para impedir que, pela violência e pela falsificação dos títulos de propriedade, os agrários se apropriassem das parcelas de terreno do Estado que o governo atribuía aos sem-terra.
No átrio da igreja – como na Idade Média, único local sagrado e livre –, numa reunião com os líderes dos movimentos sociais que ali organizavam os camponeses, constatei, espantado, que a reivindicação mais premente não era a edificação de um hospital, de uma escola ou de melhores estradas. Era, na verdade, a instalação de uma repartição do registo civil e predial, de um notário e de uma delegação do Ministério Público federal para impor a lei da República.
Apesar de magistrado, não me tinha, verdadeiramente, apercebido da importância que a existência física do Estado e da lei podiam revestir para um cidadão desprotegido.
Compreendi então melhor o alcance político do que, em tempos, Flores d’Arcais defendeu: nos nossos dias fazer cumprir a lei, não sendo um acto revolucionário, é já de si um acto corajoso de progresso social.
Vêm estas considerações a propósito da reforma do mapa judicial.
É certo que, na explanação de motivos, se alerta para riscos que o encerramento de tribunais comporta para a afirmação dos direitos dos cidadãos.
É bom que ainda haja quem tenha disso consciência.
Raro, o legislador concede, hoje, que nem tudo se deve medir pela bitola da ortodoxia económico-liberal.
A retirada desarticulada de expressões da soberania e serviços do Estado de muitas regiões, contribui, de facto, para um esmorecimento da lei e dos direitos dos mais fracos.
Os tribunais constituem ainda, em muitos locais, a única expressão da soberania nacional.
Claro é que, pelo seu diminuto serviço, a existência de alguns deles pode não se justificar já.
A acontecer o encerramento de tribunais, poderá, contudo, pensar-se na sua substituição por julgados de paz concebidos não como meros meios alternativos, mas como verdadeiros órgãos integrantes do poder judicial, com competência para muitos dos casos hoje àqueles atribuídos. Os mapas dos dois tipos de órgãos podem e devem ser subsidiários e coordenados.
Projectar, concomitantemente, serviços móveis de atendimento do Ministério Público das novas comarcas concentradas, tornando-os regularmente acessíveis aos cidadãos dos locais onde os tribunais fecharam, pode também possibilitar uma alternativa para uma efectivação real de direitos pelos cidadãos.
Bagão Félix, insuspeito de esquerdismo, referindo-se à privatização e ao encerramento dos correios, alertou já para a dimensão social e política do problema do eclipse do Estado.
A reforma do Estado só pode ser pensada articuladamente.
Isto para que a selva e a sua lei não se substituam à República e à lei.
Opinião de António Cluny
Jurista e presidente da MEDEL
Jornal I de 28-02-2012
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