Marinho
Pinto - A sofreguidão com que se retiram dos nossos tribunais litígios que
durante séculos lá foram tramitados e resolvidos de forma soberana levanta, a
qualquer pessoa séria, as maiores suspeitas sobre os verdadeiros fins dessas
opções. Parece que, de repente, os órgãos de soberania especificamente criados
para administrar a justiça deixaram de ter qualquer utilidade ou capacidade
para cumprir essa função constitucional. Tudo parece ser legítimo para fugir
dos tribunais ou para impedir as pessoas de os procurarem. Multiplicam-se os
julgados de paz, os tribunais arbitrais e os centros privados de mediação de
conflitos laborais, familiares e criminais. Tudo serve para fazer justiça
exceto os órgãos que o Estado criou exclusivamente para isso; todos podem fazer
justiça menos os magistrados.
Argumenta-se que alguns desses meios são mais
baratos, mais informais e mais próximos das pessoas, mas ninguém justifica por
que é que os tribunais são tão caros, tão formalistas e tão distantes dos
cidadãos. Outros tornam-se insuportavelmente escandalosos pela autêntica
privatização da justiça a que procedem. Os centros de mediação estão virados
para o lucro e querem obrigar as pessoas a fazerem as pazes com base em acordos
quase sempre leoninos em favor das partes económica e culturalmente mais
fortes. Para isso afastam os advogados, pois estes, seja qual for o processo ou
a instância, igualizam as partes perante o julgador, impedindo que as
desigualdades sociais, económicas e culturais assumam relevância processual.
É, porém, nos chamados tribunais arbitrais que se
levantam as mais sérias apreensões. Não está só em causa o facto de as partes
escolherem os juízes, violando, assim, o princípio do juiz natural; não está só
em causa o facto de esses tribunais funcionarem num registo de autêntica
clandestinidade, já que não existe qualquer publicidade das suas decisões nem
da tramitação dos processos; já nem sequer surpreende a promiscuidade
resultante de a função dos juízes ser desempenhada, em regra, por advogados e o
papel dos advogados ser verdadeiramente desempenhado por quem está no lugar dos
juízes. O que está, de facto, em causa são as suspeitas crescentes de que tais
tribunais são usados para atingir fins ilícitos, sobretudo quando estão em
«confronto» interesses públicos e privados; o que está em causa são as
suspeitas de que são usados cada vez mais para legalizarem transferências
ilícitas de recursos públicos para bolsos privados.
Não tenho nada contra a arbitragem entre privados,
mas tenho tudo contra a sua utilização pelo Estado e outras entidades públicas,
em contratos público-privados, com renúncia aos tribunais soberanos e ao
direito de recurso, apesar de sistematicamente saírem derrotados na «justiça
arbitral». A minha oposição é ainda maior à chamada arbitragem fiscal que, tudo
o indica, foi criada propositadamente para legalizar fugas aos impostos de
grandes contribuintes e repartir entre privados e decisores públicos parte
significativa das suas dívidas fiscais.
O recurso à arbitragem garante que certos negócios
público-privados não sejam escrutinados por magistrados independentes, mas sim
legitimados por advogados da confiança das partes que, para tal, são
metamorfoseados em juízes. A opção pelas arbitragens evita também o risco de se
mexer em coisas que possam revelar as generosas comissões que essas negociatas,
em regra, propiciam aos decisores públicos corruptos.
Que essas práticas se estejam a generalizar em
Portugal, até com o beneplácito público de membros do Governo, já não espanta
ninguém. O que espanta já não são sequer os ataques e os insultos que os
beneficiários da corrupção dirigem a quem a denuncia, mas sim o silêncio
generalizado das pessoas honestas.
NOTA: Estou em Moçambique há cinco dias e, ontem,
pela primeira vez nas últimas duas ou três décadas, voltei a sentir orgulho em
ser português. O povo do meu país saiu à rua, de norte a sul, para dizer basta
a um governo de fanáticos, de incompetentes e de mentirosos que usa o poder
para favorecer os amigos e familiares, para perseguir quem o critica e para
lançar a maioria da população na miséria.
Marinho Pinto
Jornal de Notícias de 17-09-2012
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