sábado, 9 de junho de 2012

Morada de pedófilos vai ser revelada a escolas e vizinhos


Ministra da Justiça avança, até ao final do ano, com o registo de agressores sexuais de menores. Grau de perigosidade dos condenados dita quem é informado da identidade e localização.Polícia, escolas e vizinhança serão avisados caso residam pedófilos na zona. Lista levanta polémica.
Há mais de dez anos que Paula Teixeira da Cruz defendia que Portugal devia referenciar os agressores sexuais de menores e divulgar, de forma restrita e controlada, a sua identidade, foto, morada, crime e condenação. Como advogada nunca conseguiu apoio. Agora, um ano passado com a tutela da Justiça, a ministra vai avançar com a medida: até dezembro será criado um registo nacional de abusadores de crianças, cujos dados serão transmitidos às autoridades policiais, escolas e creches da zona de residência dos pedófilos. Nos casos mais graves, o alerta estende-se aos vizinhos.
"Imagine-se um homem que foi condenado por ter abusado e matado uma criança. As pessoas que moram no prédio e que tenham filhos têm de ser avisadas", defende a ministra da Justiça. E sustenta a decisão com números: "Mais de 90% destes agressores são reincidentes, é uma compulsão. A possibilidade de voltarem a abusar de uma criança é elevada. Temos de saber onde estão". Apesar de inspirado na Lei de Megan norte-americana , o modelo de referenciação português, ainda em estudo, vai impor limites para a divulgação dos perfis dos abusadores: "A lista não vai estar acessível a quem quiser, na internet. O modelo vai funcionar de cima para baixo. É o sistema judicial que decide quem deve ser informado, de acordo com a perigosidade do condenado", garante a ministra.
Os agressores sujeitos a penas mais leves só deverão ser referenciados às forças de segurança da sua zona de residência. À medida que aumenta a gravidade do crime multiplicam-se também as entidades informadas pela Justiça sobre o paradeiro do agressor sexual: escolas, creches, ATL e outras instituições locais que trabalham diretamente com crianças. E por fim, os vizinhos. Para evitar perseguições ou violência contra os abusadores, quem recebe a informação é obrigado ao dever de sigilo. "Está prevista a possibilidade de haver proteção para os condenados que constam da lista", adianta a ministra.
O sistema de referenciação vai ser criado graças à transposição para o quadro legal nacional da nova diretiva da União Europeia relativa à luta contra o abuso e exploração sexual de crianças e pornografia infantil. Aprovada em dezembro de 2011, permite aos Estados-membros criar "registos de autores de crimes sexuais", cabendo a cada país definir as regras da divulgação: "por exemplo, limitando o seu acesso às autoridades judiciais e/ou policiais", sugere o documento.
Sem efeitos retroativos, a lista nacional de agressores sexuais só incluirá indivíduos condenados após a transposição da diretiva. Ninguém será informado do paradeiro dos agressores sexuais condenados e atualmente em liberdade, nem da libertação e morada dos quase 300 abusadores que cumprem agora pena nas cadeias portuguesas.
Constitucional ou pena sem fim?
Marinho Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, desconhece o diploma em detalhe — a Ordem não foi consultada neste processo — mas duvida da constitucionalidade da referenciação de agressores sexuais que já cumpriram a pena a que foram condenados: "Em relação a este assunto há duas abordagens. Se se trata de um caso clínico, de uma compulsão sexual incontrolável, então a pessoa tem de ser tratada clinicamente. Se é um caso criminal, a pessoa é julgada, cumpre a pena e não pode ser estigmatizada nem perseguida por isso. A Constituição da República Portuguesa não o permite. A sua dívida para com a sociedade está saldada. O facto de existir noutros países não significa que tem de existir cá".
O constitucionalista Pedro Bacelar Vasconcelos não censura, à partida, que a ministra avance com este tema, mas quer vê-lo discutido, "de forma profunda e muito concreta", por vários setores da sociedade. "Estão em causa Direitos Fundamentais cujas lesões têm de ser ponderadas. O valor que é o da proteção dos menores pode justificar a abordagem, mas é preciso avaliar a sua adequação e proporcionalidade. Uma coisa será, por exemplo, que a pessoa se apresente periodicamente numa esquadra, outra bem diferente será os vizinhos saberem onde mora. Isso é uma pena para a vida".
Nuno Garoupa é professor de Direito na Universidade de Illinois: vive nos EUA, o país pioneiro das listas de agressores sexuais de menores. "Esta medida colide com os direitos dos referenciados na lista, mas esses direitos não são absolutos", diz o académico.
Nos EUA todos os Estados são obrigados a ter um registo de abusadores, sendo que o conteúdo e divulgação varia de Estado para Estado. "O trabalho académico mostra que o registo é mais eficaz na prevenção e dissuasão da delinquência sexual quanto mais público for. Mostra também que o registo favorece a reincidência. Temos pois uma difícil equação de custo-benefício", remata. Dulce Rocha, vice-presidente do Instituto de Apoio à Criança, centra-se nos benefícios. É a "reincidência elevadíssima" deste tipo de agressor que a faz pender para a defesa da referenciação: "Prova que nestes casos a pena, só por si, não cumpre os objetivos de ressocialização e reinserção", explica. Mas a procuradora gostava que a ministra da Justiça fosse mais longe e instituísse também a avaliação do grau de perigosidade dos condenados: uma 'má nota' perpetuaria a pena dos agressores sob a forma de medidas de segurança.
Um ano antes do prazo
Paula Teixeira da Cruz tinha até 18 dezembro de 2013 para transpor a diretiva. Antecipa-se num ano ao prazo. Diz que era uma prioridade do Executivo, que "há muito por fazer" em termos de legislação de proteção de menores. O diploma europeu dá-lhe ainda — e a todos os ministros da Justiça da UE — mais armas de combate ao abuso sexual de crianças. Quem investiga, por exemplo, deverá poder recorrer a escutas, vigilância por meios eletrónicos, monitorização de contas bancárias ou até mesmo criar uma identidade falsa na internet.
Mas a nova diretiva também quer os países a trabalhar na reinserção e reabilitação dos condenados: "Deverão ser propostos aos agressores sexuais programas ou medidas de intervenção, de caráter facultativo, centrados nos aspetos médicos e psicossociais".
Neste ponto, a ministra já leva o trabalho avançado. Desde 2009 que a Direção-Geral de Serviços Prisionais tem em curso um Programa de Intervenção Dirigido a Agressores Sexuais. Estruturado pelo psicólogo Rui Abrunhosa Gonçalves funciona em três cadeias — Carregueira, Paços de Ferreira e Funchal — e é "voluntário, o que lhe tira 'clientela'. Anualmente, apenas 15 a 18 reclusos aceitam participar, em cada prisão. No ano passado foram 52 os que frequentaram, em acumulado, as sessões. No início de 2012 já eram só 20. Depois de três anos de programa, a maioria continua a sair em liberdade sem passar por qualquer intervenção específica.

Megan e Sarah mudaram a lei dos EUA e de Inglaterra
Megan Kanka tinha sete anos quando foi violada e morta pelo vizinho da frente, em Hamilton, nos EUA, em julho de 1994. O homicida, soube-se depois, tinha antecedentes por abuso sexual de menores. Os pais de Megan não pararam até convencerem o Senado a aprovar uma lei que obrigasse à referenciação e divulgação pública do perfil e morada de abusadores: não queriam que mais nenhum pai perdesse um filho por desconhecer que havia um pedófilo na sua rua. Hoje, a Lei de Megan vigora em todos os estados — só varia o grau de acesso aos perfis. Na Califórnia basta ir a www.meganslaw.ca.gov e procurar no mapa do Estado quem mora numa rua, área de código postal, cidade ou pesquisar por parque infantil ou escola. O perfil do pedófilo inclui foto, nome, morada, altura, peso, cor do cabelo e olhos, etnia, cicatrizes e tatuagens e crime cometido.
Em Inglaterra outro crime inspirou nova lei. Sarah Payne tinha sete anos quando desapareceu em West Sussex, em julho de 2001. Foi encontrada 17 dias depois, morta num campo de milho. Roy Whiting, um pedófilo reincidente, foi condenado.
Os pais encetaram uma campanha semelhante à dos pais de Megan. Também queriam ter acesso público à identificação dos 110 mil abusadores referenciados em Inglaterra. O jornal "News of The World" juntou-se à luta e publicou fotos e moradas de 50 agressores. Em 2011, o Governo anunciou que a Lei de Sarah seria implementada.

REPORTAGEM
Carregueira é uma das três prisões com programa para evitar reincidência de condenados por abuso sexual
"Faltam quatro anos para lhe pedir desculpa"
Sessões diferentes para abusadores de menores e violadores. Há cada vez mais condenados
Tem 34 anos, está a cumprir pena no Estabelecimento Prisional (EP) da Carregueira, em Sintra, condenado a oito anos e seis meses por violação de uma rapariga. Na sua voz há uma vontade convicta, trabalhada, que só as grades impedem de concretizar no imediato: "Faltam quatro anos e nove meses para lhe pedir desculpa. Quando sair vou ter com ela e peço desculpa pelo que lhe fiz". Durante quase um ano frequentou o Programa de Intervenção Dirigido a Agressores Sexuais. "Aquilo mudou-me", diz Rui*.
Todas as semanas, uma hora e meia na conversa, em grupo, com um psicólogo e outros reclusos condenados pelo mesmo crime, 44 sessões no total a falar sobre o que fizeram, os motivos, as vítimas, as fantasias, a consciência emocional e como evitar que reincidam. É quase uma reunião de anónimos, numa sala sem nome. Nos altifalantes, os reclusos são chamados pelo número mas sem mencionar para quê ou para onde. Quem chama sabe, quem é chamado também.
Um encontro daqueles às claras denunciaria os crimes de cada um. E numa cadeia ninguém confirma a ninguém que é agressor sexual, que é 'viola'. A alcunha é uma marca, uma distinção negra. São olhados de lado por todos. Entre pares, cometeram o pior crime. Mas, pelo menos em número, violadores e abusadores de menores estão a ganhar presença nas cadeias.
No início de 2012, eram 586 os reclusos a cumprir pena por crimes sexuais, mais 8l em dois anos. A subida é ainda maior nas condenações por crimes contra menores (abuso, lenocínio, tráfico e pornografia), que aumentaram quase 20%, sendo já superiores às de violação. O crescimento, aliás, começa cá fora. Em 2011 os órgãos de polícia criminal registaram mais 95 participações de crimes contra crianças, adolescentes e dependentes (783 no total), com os casos de lenocínio e pornografia de menores (89) a dispararem 37%. As violações (374) desceram. O programa de prevenção da reincidência arrancou em 2009, concebido pelo psicólogo Rui Abrunhosa Gonçalves, que deu formação a 22 técnicos de 11 prisões. Antes disso, os agressores sexuais saíam em liberdade sem que nenhum trabalho fosse feito para evitar recaídas. Durante a pena, iam a consultas de clínica geral, alguns ao psicólogo e poderiam, no máximo, tomar fármacos para a ansiedade. Os medicamentos inibidores do desejo (castração química) não são permitidos em meio prisional.
As sessões só decorrem nos EP da Carregueira, Paços de Ferreira e Funchal e a frequência é voluntária, o que faz com que poucos reclusos aceitem participar. Têm uma média de 35 anos, a pena a cumprir ronda os sete anos e meio e a maioria não assume o crime. "Os poucos que aceitam entrar no programa acham que obtêm vantagens na redução da pena ou na conquista de precária. Quando percebem que não acontece, que têm de admitir o crime, desistem. Temos 70% de abandono. Chegam a acabar o programa apenas dois ou três homens. E isso é um problema, porque só pena, só castigo, não resolve nada", explica o psicólogo Vítor Vieira, um dos dois coordenadores do programa na Carregueira. Aqui, cerca de metade dos reclusos cumpre pena por crimes sexuais: chamam-lhe a 'prisão dos inocentes', tal é o número de condenados em negação.
Falar de emoções pela primeira vez
Rui já não diz que é inocente. Mas disse durante anos, quando o prenderam, quando foi julgado. E jurou-o à mulher e ao filho ainda sem idade para perceber. E disse convicto. "Mentia a mim mesmo. Convenci-me que tinha sido sexo consentido, inventei mil histórias, a vítima era eu".
Garante que foi o programa, as explicações dos psicólogos cheias de exemplos, a partilha de histórias semelhantes que o mudaram. "Parece estúpido, mas tive de aprender que o sexo não pode ser forçado, um 'não' significa 'não'. É como quando queremos passar a fronteira, entrar noutro país: precisamos de passaporte, de autorização. Nas relações sexuais também. Mesmo com a nossa mulher. Puseram-me a pensar na vítima, a sentir o que ela sentiu. Senti vergonha, arrependimento. Já disse a verdade à minha família".
Nas prisões onde o programa está ativo, os reclusos foram divididos em dois grupos: violadores e abusadores de menores. Era impossível misturá-los. "Seria como juntar raposas e lobos. Iria provocar inibição, além de que são criminosos muito diferentes", explica Vítor Vieira. As primeiras sessões são de motivação para a mudança, para a aceitação do crime. Só depois se avança para coisas mais profundas, como a consciência emocional, a empatia pela vítima, as fantasias e a sexualidade. No fim ensina-se a prevenir a recaída. "É um programa semelhante ao dos toxicodependentes, com várias fases para não reincidirem. A maioria fala aqui, pela primeira vez, das suas emoções", conta o técnico da Carregueira.
Jorge Monteiro, diretor do programa na Direção Geral de Serviços Prisionais (DGSP), reconhece que a frequência está aquém do desejado. "Toda a intervenção em meio prisional é voluntária. Insistimos com os reclusos que estão no fim da sentença, mais perto da liberdade, mas este é um programa difícil, de elevada ativação emocional, que implica alterar atitudes, crenças. Ainda assim, a avaliação já feita mostra uma alteração do comportamento dos participantes". "Não percebia como fiz tal coisa" Paulo*, 38 anos, está a dois anos e quatro meses da liberdade. O tribunal condenou-o a quase seis por ter abusado de uma menina do seu núcleo familiar. "Pedi ao juiz para ir para uma prisão onde me ajudassem. Sempre disse que era culpado, mas não conseguia perceber nem explicar como fiz tal coisa", conta, na sala de visitas do EP da Carregueira. E enquanto conta parece quase feliz. "Nunca me senti tão livre. Se abrissem as portas não fugia. Sinto um alívio. Aquelas sessões deram-me uma maturidade que nunca tive. Ali tirei a angústia que trazia dentro. Quem tenha ainda um pingo de cabeça não está bem com isto, é como um nó sempre a apertar. Conheci-me, reconheci os pontos fracos, falei do meu pai alcoólico, da falta de amor da minha mãe, da saída de casa aos 18..."
Trabalhador da construção civil, duas filhas, punha no álcool as culpas pelo crime. "Sei agora que a bebida foi só a ignição. Estava sozinho, deprimido, e encontrei alguém vulnerável, acessível, que me dava atenção... Agora sei reconhecer e evitar as situações de risco: não posso beber; se estiver ao pé de crianças e as fantasias voltarem devo afastar-me e pedir ajuda médica; e tenho de evitar a solidão, praticar desporto, meditar... Deram-me as ferramentas para não cair em tentação quando sair".
Raquel Moleiro e Ricardo Marques
Expresso de 09-06-2012
(Nomes dos arguidos fictícios, a pedido dos mesmos)

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