quarta-feira, 21 de março de 2012

UM ENSAIO SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA EUROPA

Jürgen Habermas Edições 70, 2012, trad. de Marian Toldy e Teresa Toldy, prefácio de José Joaquim Gomes Canotilho, 176 págs., ¤15
Ensaio
Sob a pressão da crise económica e financeira, o debate sobre a Europa, que já era politicamente pobre e não estimulado pelas instituições europeias e pelos Estados-membros, ficou submetido aos imperativos do mercado, às propostas cegas de saídas para a crise e à exibição patética de uma falhada união monetária. Este colapso do ideal europeu suscitou uma resposta veemente de um filósofo alemão que já foi classificado como “o último europeu”: Jürgen Habermas. O direito a tal epíteto, que tanto deixa entrever o reconhecimento devido a um resistente como a suspeita de uma serôdia ingenuidade, foi-lhe atribuído por motivo de um livro publicado já no segundo semestre de 2011, que chegou rapidamente à tradução portuguesa: “Um Ensaio sobre a Constituição da Europa”. Ao arrepio da lógica coerciva de uma desastrosa desunião europeia, Habermas vem reclamar mais Europa, baseada num modelo de democracia transnacional que, na sua perspetiva, apenas um projeto de constitucionalização do direito internacional — o princípio jurídico de um direito cosmopolítico — pode garantir. Fácil é então perceber que Habermas segue a ideia de uma constituição civil e política que Kant propôs num texto de 1795 sobre a “paz perpétua”. Último europeu ou kantiano primordial, Habermas vem mais uma vez defender o projeto da modernidade que, no contexto de um outro debate, há cerca de três décadas, considerou que tinha sido interrompido, mas era preciso prosseguir. As maquinações políticas em que se empenharam Angela Merkel e Sarkozy — numa aliança entre o liberalismo económico alemão e o estatismo francês — são motivo imediato da reação de Habermas. Aí, viu ele um golpe de Estado silencioso que estabeleceu uma “pós-democracia”, em que as elites políticas europeias começam a pôr em ação um “federalismo executivo” que acentua um estilo governativo-burocrático sem bases jurídicas, violando de forma flagrante todos os requisitos de legitimação de uma União Europeia que se devia basear no critério de uma soberania partilhada. Daí, a sua proposta de uma juridicização democrática através de um projeto constitucional, segundo o modelo de uma comunidade cosmopolita. Ou se segue o projeto de uma “democracia transnacional” ou se acentua a tendência instalada para um “federalismo executivo pós-democrático”. A ideia de Habermas é a de que é preciso viabilizar a primeira hipótese, tornando possível uma transnacionalização da soberania dos povos sob a forma de uma confederação de Estados nacionais, sem se ficar preso na oposição entre dois sujeitos constituintes: os cidadãos da União, por um lado, e os povos europeus, por outro. Em vez de uma Europa construída à porta fechada, seria necessário fazer da Europa um espaço consubstancial a uma esfera pública. A partir de uma constitucionalização do direito internacional, Habermas, inspirado em Kant, aponta para uma União Europeia que seria um importante passo para uma sociedade mundial constituída politicamente, para uma comunidade dos Estados e dos cidadãos do mundo. Evidentemente, tudo isto parece um ideal quase ingénuo. Mas também aqui Habermas poderia evocar Kant, para quem a questão não era a de saber se a paz perpétua é real — realizável — ou absurda, mas a de “agir como se tal coisa existisse”. O pressuposto de Habermas no seu projeto de uma Constituição europeia que, por via da juridicização, tornasse possível uma transnacionalização da democracia e da soberania do povo, é o de uma ligação entre direito e política “tão antiga como o próprio Estado”. O direito cosmopolítico que funda esta comunidade tem como referência os direitos humanos. Mas Habermas, ainda que não as refira, conhece bem as críticas que foram feitas aos direitos humanos (nomeadamente por Hannah Arendt). Por isso, baseado em Kant, vai seguir o conceito filosófico de dignidade humana, deduzindo dele os direitos humanos e afirmando que “a dignidade humana é um sismógrafo que indica o que é constitutivo de uma ordem jurídica democrática”. António Guerreiro


Ver ainda, em particular, o artigo de José Joaquim Gomes Canotilho publicado hoje no JL-JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS.

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