segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Juízes aplicam medidas de coacção sem saberem se arguidos cumprem


Magistrados decidem medidas de coação “às escuras”. Falha: não existe um sistema que centralize os casos em que elas são violadas.
Um homem sujeito a prisão domiciliária que estava evadido há dois meses, desde que cortou a pulseira eletrónica, foi detido pela GNR no concelho de Vale de Cambra, no dia 21. Este caso não entra para as estatísticas de violação de medidas de coação, porque estas, pura e simplesmente, não existem. E como não há um sistema que centralize esta informação, magistrados do Ministério Público e juizes não têm maneira de saber se estão perante um arguido que por diversas vezes e em vários processos desrespeitou a obrigação de se apresentar às autoridades ou a proibição de contactos com a vítima, por exemplo.
“Ninguém sabe em Portugal quais são as medidas de coação que cada arguido tem em processos diferentes, muito menos quais as mais violadas”, afirmou taxativamente ao DN o secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Rui Cardoso.
“Um detido por roubo pode estar com apresentações periódicas em posto policial da área de residência em 30 tribunais diferentes, que eu não sei se ele está ou não. Só sei se está sujeito a essa medida de coação na minha comarca que, é Loures, às outras não tenho acesso”, exemplificou.
A falta de conhecimento de algo tão crucial afeta todo o processo decisório. “Perante um arguido que já violou várias vezes as apresentações, um juiz podia decretar a prisão preventiva, mas acaba por não o fazer por não ter conhecimento dessas mesmas violações. E um magistrado do Ministério Público também não promove essa medida junto do juiz de instrução criminal pelo mesmo motivo”, adianta, por sua vez, o juiz Manuel Ramos Soares, secretário-geral da Associação Sindical dos Juizes Portugueses.
Não existe nenhuma base de dados centralizada dos tribunais e “faz muita falta” sublinha Rui Cardoso, do SMMP. “Para as medidas de coação bastava que a aplicação fosse comum a todo o País.”
Ineficácia do sistema
Se um arguido não respeitar a medida de apresentações periódicas às autoridades, a PSP ou a GNR consoantea área em que aconteceu o crime – informam no processo o procurador e o juiz. Mas se esse arguido for apanhado a cometer outro crime numa outra comarca, nenhum procurador do Ministério Público ou juiz sabe que ele estava sujeito àquela medida de coação e que a violou. “A medida das apresentações periódicas é tão ineficaz que é inútil promovê-la”, adianta António Ventinhas, dirigente do SMMP e procurador no tribunal de Faro. Falta base nacional de detenções Além de não ser possível o tratamento dos dados estatísticos das medidas de coação, “também não existe uma base nacional de dados de detenções que permita saber quantos dias esteve detida uma pessoa (da esquadra à preventiva) para se poder saber o desconto desse tempo na pena final”. António Ventinhas recorda que o sindicato propôs a criação de uma base nacional de detenções em 2007, antes de a reforma penal entrar em vigor, mas a proposta nunca foi executada.
“As únicas medidas de coação em que a lei permite um registo estatístico são as detentivas”, sublinha Rui Cardoso, ou seja, a prisão domiciliária e a prisão preventiva. O Ministério da Justiça esclareceu o DN de que não é possível apurar as medidas de coação que são mais violadas no País junto dos tribunais de primeira instância. “Pelo que não podemos fornecer dados sobre o número de arguidos que violaram medidas de coação.”
As medidas de coação vão das mais simples, como o termo de identidade e residência ou as apresentações, às mais graves, como a proibição de contactos com a vítima, a proibição de frequentar determinados espaços, a prisão domiciliária e, claro, a prisão preventiva.
Novo sistema informático centraliza processos do MP em todo o País agic Por enquanto, ainda é experimental. Funciona apenas no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa
Uma nova ferramenta de gestão do inquérito-crime, a AGIC (Aplicação de Gestão do Inquérito Crime) está em fase-piloto no DIAP de Lisboa Esta aplicação pensada para o Ministério Público permite que os procuradores das diversas comarcas saibam que processos tem um arguido em todas as comarcas do País. Mas, segundo informações recolhidas pelo DN, é muito provável que a AGIC venha a ser incorporada num projeto mais alargado.
O Ministério da Justiça esclareceu o DN de que pretende terminar em abril uma análise “funcional para a informatização dos tribunais com uma nova arquitetura”. Daqui resultará um “futuro caderno de encargos para o desenvolvimento” desse projeto.
A Associação Sindical dos Juizes Portugueses integra a comissão para a informatização dos tribunais e tem acompanhado o processo. “Vamos defender que procuradores e juizes possam ter acesso automático a um conjunto de informações que não têm: o registo civil, o registo predial e o registo criminal, por exemplo, e ainda as bases de dados das polícias”, referiu o secretário-geral da ASJP, o juiz Manuel Ramos Soares. “É provável que a AGIC venha a ser incorporada neste novo sistema”. Para os órgãos de polícia criminal, está também prevista a criação de um sistema informático que permitirá às polícias partilharem informação online.
Rute Coelho
Diário de Notícias de 27-02-2012

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