A Justiça é uma das áreas carecidas de reforma estrutural no nosso país. É-o tanto por imperativo da exigência de um Estado de Direito verdadeiramente democrático como por imperativo da criação de um ambiente jurídicoeconómico propício ao desenvolvimento do país.
A melhoria do funcionamento do sistema judicial é uma das exigências do chamado “Memorando da troika”, que detalha as condições gerais de política económica necessárias para Portugal beneficiar da assistência financeira prevista pelo Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, verdadeiro “mecanismo de suporte de vida” para um Estado superendividado que deixou de poder financiar-se no mercado.
Considerando o sistema judicial essencial para o funcionamento correcto e justo da economia, o memorando estabelece a necessidade de aumentar a eficiência e celeridade do sistema judicial através da sua reestruturação e da adopção de novos modelos de gestão dos tribunais.
Desde há muito tempo que tenho defendido, juntamente com muitos outros advogados, um sistema de justiça que responda aos legítimos anseios dos cidadãos e satisfaça as justas necessidades das empresas, no contexto da actual sociedade tecnológica e globalizada. Assim sendo, no actual quadro conjuntural, em que uma verdadeira reforma do sistema de justiça se tornou inadiável, quando a senhora ministra da Justiça tomou posse, tive uma enorme esperança que o caminho necessário começaria finalmente a ser trilhado.
Tive esperança que o poder político percebesse, finalmente, que os advogados são os primeiros interessados num sistema de justiça moderno e eficiente e, mais do que uma reforma, encetasse uma verdadeira mudança de paradigma, passando a ver os advogados como seus principais aliados e valorizando adequadamente o seu papel de profissionais indispensáveis à administração da justiça e à concretização do Estado de direito democrático.
Tive esperança que a nova ministra da Justiça fosse capaz de trazer a simplificação de procedimentos e a eficiência para dentro dos tribunais, rompendo com a política desjudicializadora dos últimos anos, que foi retirando sucessivamente competências aos tribunais e erguendo barreiras aos cidadãos e às empresas que necessitam de lhes aceder.
Os recentes fenómenos mundiais de movimentação de grupos de cidadãos em torno de causas comuns têm mostrado que estamos no dealbar de uma nova era na história da democracia. As formas actuais de democracia representativa estão a evoluir no sentido de uma mais ampla e profunda participação dos cidadãos e não podemos esquecer que, no quadro constitucional, os tribunais são o único órgão de soberania em cujo funcionamento os cidadãos podem participar quotidianamente. Fazem-no através dos advogados, que assumem nos tribunais o papel de “provedores da cidadania”, defendendo com liberdade e independência os direitos fundamentais dos cidadãos e das empresas que representam.
Não há, por isso, outro caminho a percorrer pelos Estados modernos que não seja o do reforço da independência e da legitimidade democrática dos tribunais, dotando-os dos meios técnicos e humanos necessários e suficientes para assegurar o seu eficaz funcionamento.
Apesar de toda esta esperança, é com grande mágoa que tenho assistido, nestes primeiros meses da sua governação, ao envolvimento da senhora ministra da Justiça em campanhas de ataque aos advogados e à ordem que os representa, criando casos mediáticos em cuja espuma têm ficado perdidas muitas das suas iniciativas políticas.
Começou por apontar baterias aos mais de 9000 advogados, de todas as comarcas do país, que, recebendo do Estado magros e tardios honorários, estoicamente concretizam, no dia-a-dia dos tribunais, o princípio constitucional do acesso à tutela jurisdicional efectiva por parte dos cidadãos economicamente mais carenciados.
A pretexto da detecção de um punhado de irregularidades no pagamento de honorários pelo sistema de acesso ao direito, estes advogados foram tratados publicamente pela senhora ministra da Justiça de um modo que pôs em causa a sua honorabilidade.
Convidada pela Ordem dos Advogados para a Sessão de Abertura do VII Congresso dos Advogados Portugueses, a senhora ministra da Justiça não hesitou em criar um novo caso. Desta feita, em vez de aproveitar a intervenção que foi convidada a fazer no órgão máximo da Ordem dos Advogados para pacificar a sua relação com os advogados, a senhora ministra da Justiça foi à casa dos advogados portugueses ofender toda a classe, não se coibindo de atacar pessoal e violentamente o bastonário, num discurso que se exigia que fosse institucional, e abandonando súbita e ostensivamente os trabalhos logo após a sua intervenção, enquanto usava da palavra o presidente do secretariado do congresso e do Conselho Distrital de Coimbra.
Numa demonstração pública de insensatez política, a senhora ministra da Justiça parece ter optado por abrir ainda mais a ferida já existente na sua relação de confiança com os advogados.
Apesar do que se passou, acredito que, havendo bom senso institucional, ainda há tempo de corrigir o rumo. Apelo, por isso, à senhora ministra que, neste momento tão importante da história constitucional portuguesa, oriente a reforma da justiça na direcção certa, isto é, fazendo-a com os advogados e não contra os advogados.
Nenhuma reforma do sistema de justiça vingará sem o apoio empenhado dos advogados, porque são estes que representam os cidadãos e os igualizam perante o juiz, e o objectivo imprescindível de qualquer reforma é que o cidadão recupere a sua confiança na justiça.
É claro que os magistrados são fundamentais para que tal aconteça. Mas bastará para isso que o Governo dê menos importância a alguma vozearia desejosa de protagonismo mediático e ouça, finalmente, a maioria dos magistrados portugueses, que até agora têm estado em eloquente silêncio, mas que são homens e mulheres jurídica e humanamente bem preparados, com sentido de justiça e respeitadores dos cidadãos.
Se assim forem os juízes, a reforma não precisará de muito mais do que uma “poda” legislativa, que simplifique as leis processuais, privilegiando a substância sobre a forma e servindo-se do advogado e da sua necessária criatividade como válvula reguladora do sistema. Com uma gestão profissionalizada e participada dos tribunais, retirando do juiz essa preocupação, alheia ao seu múnus de julgar, o sistema caminhará necessariamente no sentido da eficiência, da celeridade e da recuperação da confiança por parte dos cidadãos e das empresas.
Havendo leis simples, claras e estáveis, o juiz recuperará o seu prestígio e, recolhendo ao sossego da sua cátedra, será, sem protagonismos inapropriados, simplesmente, a boca que, em nome do povo, pronuncia as palavras da lei.
António Barreto Archer, Advogado, delegado do VII Congresso Advogados Portugueses
Público, 01-12-2011
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