domingo, 10 de março de 2013

Nada se perderá

Sentir o Direito
Por: Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal
Foi a filósofa americana Martha Nussbaum que me deu a conhecer, num livro sobre a inteligência das emoções ("Upheavels of Thought"), estas palavras de Gustav Mahler na maravilhosa 2ª Sinfonia: "acredita, meu coração, que nada do que quiseste se perderá". É um hino de esperança perante a morte, mas também um apelo à Justiça, que o Direito deve escutar.
A ideia dominante de Justiça tende a nivelar todas as pessoas, abstraindo das suas capacidades individuais, tanto para as castigar como para as premiar. Porém, na tradição estoica, é justo atribuir a cada um o que lhe pertence. Trata-se, na formulação apresentada há 1800 anos por Ulpiano, de dar a cada um o que lhe é devido: "suum cuique tribuere".
Esta é uma ideia de Justiça que acredita em duas teses fundamentais: por um lado, somos feitos da mesma matéria e possuímos uma natureza comum, podendo apresentar idênticos defeitos e virtudes, o que possibilita o julgamento individual; por outro lado, cada pessoa tem a sua especificidade, com crenças e capacidades cuja realização deve ser assegurada.
As palavras de Mahler parecem contradizer uma afirmação amarga de Manoel de Oliveira, segundo a qual "a vida é uma derrota". Se é verdade que todos transportamos, neste momento de angústia generalizada, os traços de uma derrota, também é certo que há sinais de que os nossos pequenos ou grandes desejos não poderão ser apagados da história individual e coletiva.
A Justiça Penal também deve partir de uma leitura da condição humana em conflito entre as dificuldades sociais e o desejo de atingir objetivos que exprimem o que há de melhor em cada pessoa. Punir alguém deve corresponder à responsabilidade de libertar o criminoso do seu crime e não a uma simples fórmula técnica ou a um ato de conveniência política.
Na perspetiva da Constituição, este entendimento é imposto pela essencial dignidade da pessoa humana, princípio que é reconhecido, logo no artigo 1º, como pressuposto e fundamento da própria República Portuguesa. Essa essencial dignidade obriga-nos a tratar cada ser humano como um fim em si mesmo e não como um meio de alcançar outros objetivos.
Só assim a "amarga necessidade" punitiva de que falava, no século XVIII, o jurista e filósofo Cesare Beccaria – um dos expoentes do iluminismo italiano, que se distinguiu na luta contra a tortura e a pena de morte – se pode transformar numa atividade social útil. O regresso à retribuição penal ou a uma prevenção utilitarista constituiria um profundo retrocesso.

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