1. Nenhum dos dois modelos de financiamento das pensões é o bom e outro o mau. Os dois têm vantagens e inconvenientes. Em geral, o sistema de repartição subentende que a pensão de reforma é, não apenas um interesse privado dos reformados, mas uma componente do tal bem comum, por uma questão de justiça ou de solidariedade inter-geracional. Ao passo que ao sistema de capitalização subjaze uma lógica individualista. Mas a escolha depende também doutros fatores: nomeadamente, de o nível dos salários permitir que se desconte o suficiente para capitalizar uma pensão suficiente. Caso isso não aconteça, as pensões têm que ser financiadas por receitas de impostos. Logo, o nosso sistema pode ser de repartição, inclusivamente com recurso a financiamento do Estado, sem que isso seja intrinsecamente mau.
2. Admitamos que o modelo de pensões da CGA pareça, neste momento, não sustentável. Em primeiro lugar, importa avaliar isto com rigor, levando em consideração que todos os fatores de insustentabilidade – montante das pensões, relações entre estas e a carreira contributiva, multiplicação de “pensões políticas”, financiamento insuficiente ou fuga aos descontos, evolução da economia. Isto normalmente não é feito, caindo-se na “solução evidente” – não há dinheiro, corta-se nas pensões. Talvez não … Há coisas que se tem que perguntar:
O Estado cumpriu em relação à CGA os seus deveres de contribuinte – pagando aquilo que exige que os patrões privados paguem ? Durante anos e anos, não ! Então que reponha isso, com juros, agora. Porque hão-de ser os reformados, que já contribuíram com a sua parte, a suportar agora o calote do Estado ?
3. O fundo de pensões da CGA tem sido gerido prudentemente ? Não. Pelo contrário, não tem sido. Tem sido obrigado a cobrir as necessidades financeiras do Estado e, ultimamente, tem sido obrigado pelo Estado a fazer investimentos de alto risco, como comprar dívida pública portuguesa. Jogar com o dinheiro dos outros é duplamente imoral. Mas não é necessário e patriótico comprar a nossa dívida ? Talvez, mas então que todos o tenham que fazer, arriscando nisso as suas poupanças, vencimentos e lucros. O tal bem comum não exige sacrifícios também comuns?
4. Admitamos que estas questões não existiam e que, num momento de crise, se tinham que confiscar pensões já fixadas e estabelecidas. Segundo o direito, pode fazer-se isto ? Entramos na tal questão dos “direitos adquiridos” que a nossa Constituição superprotegeria.
A garantia dos direitos (ou, o princípio da confiança) faz parte, há quase 250 anos, do núcleo mais nuclear do constitucionalismo ocidental. Foi um princípio enunciado pelos liberais, mas depois adotado como indiscutível pelo democracia-cristã e pela social-democracia. Só os socialistas mais radicais e as ideologias totalitárias aceitaram que o interesse coletivo (ou o que se concebe como tal) prevalecesse sobre as garantias em que repousavam os cálculos de vida das pessoas. Ou seja, o princípio da confiança e a garantia dos direitos adquiridos não são nenhuma bizarria da Constituição portuguesa nem o produto de um cálculo político oportunista (“é politicamente mais fácil defender os pensionistas de hoje e esquecer os pensionistas futuros”). Pertencem ao núcleo do pensamento político dos Estados constitucionais de hoje.
5. Claro que um liberal revisionista – como parece que há muitos, quando calha – pode achar que, num momento de crise, os princípios nucleares podem ser sacrificados à conveniência e à oportunidade. Neste caso, que o desrespeito de direitos adquiridos poderia ser justificado, por exemplo, pela viabilização de direito futuros. Ou seja, uma narrativa do género daquela que nos têm contado sobre como os despedimentos são úteis para criar emprego … Como a inverdade destas histórias tem sido demonstrada todos os dias, elas não me convencem mesmo nada.
Mas suponhamos que, por outras razões mais plausíveis, era mesmo necessário deixar de garantir direitos, frustrar expectativas e confiscar os ativos das pessoas. Não afasto totalmente esta hipótese, porque coisas extraordinárias podem acontecer numa sociedade. Só que, nesse caso, quando o bem comum está manifesta e consensualmente em causa, as soluções não podem ser apenas setoriais. Têm que ser comuns. Ora o que hoje se passa é que, ao mesmo tempo que se ameaçam com confisco as pensões, considera-se que há situações em que os rendimentos – mesmo quando imorais ou fraudulentos – são tidos como absolutamente intocáveis. Todos sabemos que casos são esses: rendas garantidas pelo Estado, contratos leoninos, como os da generalidade das parcerias, patrimónios adquiridos fraudulentamente e hoje a cargos dos contribuintes. Isto é que não pode ser: estatalismo nuns casos, liberalismo nos outros.
6. Mas, serão as pensões um direito adquirido ? Sobre isto, os juristas têm – como em quase tudo – opiniões variadas. Mas, deixando de lado os argumentos jurídicos, perguntemo-nos. Uma pensão, para a qual se descontou longamente aquilo que foi pedido, sobre a qual se fizeram cálculos de vida que já não podem ser refeitos, que foi formalmente fixada e comunicada ao pensionista, não tem que ser tratada com o mesmo respeito que merece uma casa que se comprou a prestações, os juros de um depósito bancário, uma renda negociada contratualmente, um pé de meia acumulado ao longo de anos? Eu acho que sim e, como jurista, até sei que a doutrina dominante vai no mesmo sentido. Mas, se entender que não, então abre-se a tal caixa de Pandora de que falou há tempos um alto magistrado. E, como em Chipre, ninguém estará seguro de mais nada.
Pode ser que este seja o novo paradigma que se nos propõem. É estranho que seja proposto por liberais e, ainda mais, por liberais oportunistas, que só o aplicam aos mais fracos, recuando timidamente perante os direitos (pior) adquiridos dos que tem poder.
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