sábado, 20 de julho de 2013

JUSTIÇA ANO 2021

Justiça de Perdição
JUSTIÇA ANO 2021
Maria José Morgado
A história desenrola-se no Portugal de 2021. Anos depois de uma reforma violenta do Estado que degradou os tribunais e aniquilou os magistrados.
Ele era procurador da República num caótico tribunal de um grande centro urbano e como habitualmente vinha para o serviço num autocarro apinhado de gente. Esperavam-no dezenas de presos de rua, famintos e toxicodependentes amontoados a um canto à espera dos seus despachos. Trabalhava com afinco o dia todo apesar da falta de perspetivas profissionais e gostava de servir o interesse público. Os colegas troçavam dele e os funcionários olhavam-no com desprezo. Voltava de noite a casa, a fazer contas ao magro salário com o qual sustentava a família, pagava a escola dos filhos e a renda da casa. Vivia do crédito na mercearia pois o dinheiro não dava para tudo. Ainda assim, sentia-se contente por ter conseguido aquele lugar depois de um curso atribulado terminado com média de 10 valores, aliás como a maior parte dos seus colegas que só faziam contas aos feriados e passeavam todo o dia. Os melhores alunos tinham ido para boas empresas privadas e estavam ricos.
Ao chegar a casa suportava o escárnio da mulher a gritar-lhe como é que os colegas dele ganhando o mesmo tinham carros bons, viviam em moradias, faziam férias no estrangeiro, quando é que ele percebia a miserável situação da família? Parece que no passado os magistrados ganhavam razoavelmente e não passavam por aquelas desgraças, mas agora ela dizia-lhe para se desenrascar, aprender com os colegas.
Ele resistia. Gostava do seu orgulho e honestidade, odiava o dinheiro sujo. Gostava de não fazer parte da mediocridade geral viscosa, de não se limitar às leituras de “A Bola” e de ser competente, ainda que para gáudio geral. Um dia apareceu-lhe um processo importante para decidir. Depois, convidaram-no para almoçar. Alguém lhe fez lembrar que havia maneiras de compensar dificuldades, que o Estado não pagava tanta provação. O sofrimento e a moralidade teriam limites. Se o processo fosse bem decidido tudo ficaria entre eles. Passou-lhe discretamente o número de uma conta offshore. Despediram-se e nunca mais se viram.
Ele cedeu aos demónios. Quando voltou a casa anunciou à mulher uma viagem a uma estância de luxo nos Alpes, a compra de um carro topo de gama. O céu escureceu, dormiu mal e vomitou muito. Resolveu meter baixa. Quando regressou ao serviço sentia-se aprisionado num túnel sem fim. Curiosamente, os colegas pareciam olhá-lo com mais benevolência.
Esta é uma tenebrosa história imaginária sobre políticas que ignoram a importância da justiça no PIB. Sobre o triunfo do populismo que pretende pôr em causa a exigência de remunerações dignas a quem exerce funções de justiça ou de apoio à justiça nos tribunais. Do populismo que equipara a independência e a excelência dos tribunais a um privilégio insustentável em vez de a considerar uma responsabilidade de competência para o reforço do Estado democrático. Os tribunais e seus agentes valem o que valer a nossa democracia.
Expresso | Sábado, 20 Julho 2013

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