Quando
os juízes decidem que o melhor para as crianças é ficar com um casal gay
Há
quem entenda que o “superior interesse” de uma criança não fica protegido numa
família com dois pais ou duas mães. Mas há anos que os tribunais entregam
crianças a famílias homoparentais, apesar de a lei proibir a adopção por casais
gay
Andreia
Sanches
São
14 páginas onde se passa em revista a ainda curta vida de um menino, então com
dois anos, e onde se interpreta, à luz do direito e das convenções
internacionais, o que é o “superior interesse da criança”. A certa altura, o
juiz escreve o seguinte: “Nunca será de mais afirmar que a questão da
orientação sexual de Eduardo Ferreira e Luís Borges nunca poderia ser
circunstância impeditiva na atribuição da confiança de H. aos cuidados daquele
casal.”
Num
país onde os casais gay não podem adoptar, o Tribunal de Família e Menores do
Barreiro decidiu que o menino ficaria confiado aos cuidados do cabeleireiro de
Lisboa, conhecido como Eduardo Beauté, e de Luís Borges, o mediático modelo
internacional. Foi em Outubro de 2012. Actualmente, Luís vai pondo fotografias na
sua página do Facebook – a criança na praia, em casa, a comer mousse de
chocolate, sorridente. “Obrigado por Deus te ter colocado na minha vida”,
escreveu há dias.
Um
segundo caso: em 2009, em Oliveira de Azeméis, duas meninas de oito e cinco
anos foram retiradas aos pais. Tinham sido detectados problemas de negligência
ao nível dos cuidados de higiene, alimentação e acompanhamento escolar. O pai
bebia de mais. A casa não tinha água. Para sua protecção foram acolhidas numa
instituição.
O
tio das meninas, homossexual, a viver com um companheiro há vários anos (o
casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não tinha sido aprovado), passou a
visitá-las na instituição e requereu a guarda das meninas, com a concordância
da sua irmã – mãe das crianças. A juíza de Oliveira de Azeméis analisou o
pedido e, segundo foi noticiado na altura, quando lhe enviou a carta a
convocá-lo para ir a tribunal, onde seria informado da decisão de que as
sobrinhas lhe iam ser entregues, por um período não inferior a seis meses,
remeteu-a também ao companheiro dele.
Quatro
anos passados, as meninas continuam com o casal, relatou ao PÚBLICO uma
advogada que acompanhou o processo. Os relatórios sociais que foram sendo
feitos ao longo destes anos mostram que têm carinho, higiene, refeições a
horas, acompanhamento na escola.
No
ano passado, Teresa Paixão (ver texto nestas páginas), que protagonizou com
Helena Paixão o primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal,
conseguiu, ao fim de vários anos, a guarda da filha. Beatriz vive actualmente
numa quinta em Sintra, com duas mães e uma irmã. “A sua inserção no agregado
familiar resulta benéfica para a menor”, lê-se na sentença de 2012 do Tribunal
Judicial de Estremoz.
Tema
fracturante
O
argumento mais usado pelos críticos de qualquer medida que passe por entregar
uma criança a dois homens ou a duas mulheres homossexuais é este: “O superior
interesse da criança” não se cumpre dessa forma.
Esse
mesmo argumento voltou a ouvir-se depois da aprovação, na generalidade, há duas
semanas, da proposta de lei do PS, sobre coadopção. E foi manifestada também
pelo ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares (CDS-PP), que declarou
estar contra o diploma: “Como democrata-cristão, tenho uma posição que é
pública e conhecida: a adopção deve visar sempre a protecção dos interesses da
criança. É exactamente por isso que não vejo a bondade desta medida.”
Já
a ministra da Justiça (PSD), Paula Teixeira da Cruz, felicitou os deputados
pela aprovação, que classificou como “histórica”, e, logo depois, o ministro da
Presidência, Luís Marques Guedes (PSD), veio explicar que a governante tinha
dado apenas uma “opinião pessoal”. Em suma, o tema fractura. Mesmo se se fala
apenas de co-adopção – que significa dar a possibilidade de um dos membros do
casal poder adoptar o filho, biológico ou adoptado, da pessoa com quem já vive
em união de facto ou com quem é casada.
Propostas
que visem alargar a possibilidade de qualquer casal gay ser candidato à adopção
(o que actualmente não é permitido) já foram chumbadas por duas vezes. Para a
Ordem dos Advogados, que, a pedido do Parlamento, emitiu parecer sobre a
proposta do PS (assinado por Marinho Pinto), as crianças têm direito a uma
família “constituída por um pai (homem) e uma mãe (mulher) e não com um homem a
fazer de mãe ou com uma mulher a fazer de pai.”
Quanto
ao Conselho Superior do Ministério Público, também num parecer a propósito do
projecto do PS, disse: “Vale para a orientação sexual o mesmo argumento que
valeria, por exemplo, se se considerasse, à partida, que determinadas situações
genéricas, por exemplo a situação de desempregado, de deficiência ou de
pertença a um grupo social, fossem impeditivas de adoptar.”
“Sempre
senti a pressão de ter boas notas”
Reportagem
Andreia
Sanches
A
7 de Junho de 2010, Teresa e Helena casaram-se. Dois anos depois, Teresa
conseguiu em tribunal “o exercício das responsabilidades parentais” Marisa
mudou 15 vezes de escola ao longo da vida. Mas, mesmo assim, tem boas notas e
espera entrar no curso de Psicologia Criminal, na Força Aérea. “Sempre senti a
pressão de ter sucesso”, diz. Por duas razões: vivia com duas mulheres, “duas
mães”, que tinham uma relação homossexual, e sentia que à sua volta isso nem
sempre era visto com bons olhos, pelo que iria provar que não era mal-educada.
Para além disso, as suas duas mães – Helena, a biológica, e Teresa, a
companheira de Helena – lutavam havia anos pela guarda de Beatriz, a filha
biológica de Teresa. “Se eu tivesse insucesso escolar, o tribunal ia pegar
nisso”, conta Marisa. “Iam dizer: ‘Como é que aquelas duas mães querem ter uma
criança a cargo delas se a criança que elas já têm tem insucesso escolar?’”
Marisa
tem hoje 17 anos, uma expressão confiante, um discurso articulado. “Ainda há
preconceito, mas as coisas estão melhor”, diz. Sobretudo entre as pessoas da
sua geração. Acha que a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo tem
ajudado.
Há
cerca de 11 anos, ainda não havia essa lei. Quando Teresa se separou do marido,
foi viver com a filha, Beatriz, em casa dos pais. Depois, apaixonou-se por
Helena, que vivia com a filha, Marisa, e foi viver com elas.
Quando
Teresa foi buscar Beatriz, para a juntar à nova família, os avós recusaram
entregála. “Na altura considerava-se que eu era uma pessoa perigosa, por viver
com outra mulher, e foi isso também que o meu marido alegou”, conta Teresa.
Quando
o caso chegou a tribunal, o juiz reconheceu que Beatriz gostava muito da mãe
(“mantém com ela um bom relacionamento”, lê-se no processo) e que o pai
raramente telefonava à criança. Resultado: pediram-se avaliações e “relatórios
sobre as condições económica, moral e social” de Teresa e sobre as “condições
habitacionais e económicas” do pai de Beatriz e dos avós. “Acho que fui a
primeira pessoa a quem foi pedida uma avaliação moral para ficar com a filha”,
diz Teresa.
Os
relatórios, bem como as decisões, arrastaram-se durante anos. Ao longo dos
quais Beatriz foi vivendo com os avós – que a impediam de ver a mãe. E só em
2007 é que o tribunal definiu um regime de visitas. A guarda de Beatriz
continuava confiada aos avós, mas a mãe podia vê-la, fimde-semana sim,
fim-de-semana não, e passar férias com ela.
Beatriz
tinha nove anos quando confrontou os avós. “Tinha acabado de vir de férias com
a minha mãe. De cada vez que voltava para os meus avós começava a chorar,
porque queria estar com a minha mãe. E disse: ‘Ou vou viver com a minha mãe ou
fujo’”, conta a rapariga, de cabelos longos e loiros, hoje com 13 anos. Não foram
tempos fáceis para ninguém na família. Em muitos locais onde Helena e Teresa
viveram não foram bem aceites, contam. Em algumas escolas por onde passou,
Marisa foi vítima de bullying. “E quando íamos à escola perguntar o que se
passava diziamnos: ‘Oh, os outros, coitadinhos, são filhos de famílias um pouco
complicadas…’ Havia sempre uma desculpa. Mas se fosse a Marisa a fazer bullying
a resposta seria: ‘Pois, já se sabe, filha de um casal homossexual tinha de
fazer asneira’”, diz Teresa.
Em
Fevereiro de 2006, Teresa e Helena tornaram-se o primeiro casal do país a
dirigir-se a uma conservatório para se casarem. Era o início de um mediático
processo que trouxe Helena e Teresa para as páginas dos jornais. Foi uma
exposição enorme, mas não se arrependem. “Voltávamos a fazer se fosse preciso.”
A 7 de Junho de 2010, com a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo
aprovada, casaram-se – foram o primeiro casal gay a fazê-lo em Portugal. Marisa
e Beatriz assistiram à cerimónia – nessa altura, Beatriz já vivia com elas.
O
processo de regulação do poder paternal, contudo, conseguiu demorar mais tempo.
A 2 de Julho de 2012, o tribunal, depois de verificar que Beatriz já vivia com
a mãe, com “a mulher desta e a filha menor desta”, que estava “bem inserida no
contexto escolar”, que apresentava “bom aproveitamento” e “boa relação
afectiva” com a progenitora, entregou “o exercício das responsabilidades
parentais” a Teresa.
Há
muito, diz Teresa, que o pai de Beatriz está ausente da vida da filha. Por
isso, tanto ela como Helena gostavam que a lei da coadopção se aplicasse à
família delas – “Mas já me disseram que não se aplica.” E disseram-lhes bem:
tal como foi aprovado, o projecto de lei do PS deixa bem claro que se houver um
segundo vínculo de filiação estabelecido com o menor, a co-adopção não pode ser
requerida.
Mesmo
sem lei, partilham a educação das filhas. Teresa é encarregada de educação de
Marisa. E Helena, encarregada de educação de Beatriz. Assim, podem ir as duas
às reuniões da escola de cada uma das filhas. O debate prossegue. Mas,
independentemente das grandes diferenças que marcam as decisões dos tribunais
do Barreiro, Oliveira de Azeméis e Estremoz, e de estas não visarem a figura
legal da adopção ou da co-adopção, elas mostram como os tribunais portugueses já
decidiram, em alguns casos, que o “superior interesse” das crianças se cumpre
enquadrando-as numa família homoparental. E estes não são casos únicos – os
envolvidos tendem é a não revelar as decisões, disseram ao PÚBLICO
representantes de algumas associações que prestam apoio a pais homossexuais.
O
interesse das crianças
O
caso Eduardo Beauté e Luís Borges, bastante mediatizado na altura, tem
características únicas, entre os que foram noticiados ao longo dos anos.
Tinham-se casado em Maio de 2011. Em Agosto desse ano, a mãe de um menino com
um ano e três meses entregou-lhes o filho para que cuidassem dele, continuando,
contudo, a visitá-lo. A descrição consta da sentença a que o PÚBLICO teve
acesso na íntegra.
O
menino nascera com síndrome de Down, e alguns problemas decorrentes, e não
apresentava “qualquer estímulo adequado à sua idade”. O pai estava preso.
Já
Eduardo e Luís garantiam-lhe, segundo os relatórios de avaliação analisados
pelo juiz António José Fialho, os cuidados de saúde adequados, tendo sido
possível observar “uma evolução francamente positiva em termos de
desenvolvimento”. Mais: construíram uma “relação afectiva forte” com a criança,
pretendiam assumir “responsabilidades parentais”.
Os
avós da criança estavam contra, por se tratar de um casal gay, e queriam ficar
com o neto – que passaria a acompanhá-los na sua actividade de vendedores
ambulantes.
“Considerar
que a orientação sexual constituiria um factor de impedimento à atribuição dos
cuidados ou das responsabilidades parentais consubstanciaria uma discriminação
com base nessa orientação, proibida por via dos princípios da igualdade e da
dignidade da pessoa humana”, escreveu o juiz do Barreiro.
“Não
resulta demonstrado que essa orientação seja um factor de risco ou de perigo
para a criança”, argumentou. E “os receios” manifestados de que ela pudesse
“seguir uma orientação sexual diversa da pretendida pelos seus pais ou pela sua
família são também infundados”, já que “não é possível educar alguém para ser
homossexual ou heterossexual”.
Ambiguidade
ou preconceito
“Nem
a lei nem os instrumentos internacionais definem o que deve entender-se por ‘superior
interesse da criança’”, sustenta o juiz na sua decisão. “Daí que, por se tratar
de um conceito jurídico indeterminado, o princípio só adquire relevância quando
referido ao interesse de cada criança em concreto, defendendo-se mesmo que
haverá tantos interesses quantas forem as crianças destinatárias.”
Para
o juiz, este não era um menino igual aos outros, “pelo que o acompanhamento em
feiras e mercados não seria o local adequado para lhe permitir uma oportunidade
diferente e estruturada em termos de estímulos”. Por isso, valorizou “a
dedicação, empenho, estabilidade, carinho e respeito” que Eduardo Beauté e Luís
Borges lhe proporcionavam.
Optou
por confiar a criança aos cuidados de Eduardo e Luís – primeiro como medida de
protecção e, depois, atribuindo-lhes os “poderes-deveres de guarda, de
representação, assistência e educação do menor”, incluindo a possibilidade de
viajarem todos, sem autorização dos pais biológicos. As “restantes
responsabilidades parentais” foram atribuídas à mãe da criança, que deveria
poder visitá-la em dias e local a combinar com Luís e Eduardo.
O
tema não é pacífico. Rita Lobo Xavier, professora de Direito da Universidade
Católica do Porto e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da
Vida, diz ter grandes dúvidas em relação a este tipo de decisões – ainda que
ache que o caso de Oliveira de Azeméis está “legalmente mais bem defendido”
porque a confiança das crianças é, formalmente, entregue a uma pessoa e não a
um casal gay.
“Se
a lei proíbe a adopção por pessoas do mesmo sexo, não faz sentido confiar um
menor a um casal constituído por pessoas do mesmo sexo”, diz, defendendo ainda
que se é um facto que a questão do “superior interesse da criança” não é para
ser analisado à luz de “critérios de legalidade estrita”, também não pode haver
“arbitrariedade”.
Sérgio
Vitorino, activista da associação Panteras Rosa, vê nestas decisões dos
tribunais algo bem diferente: “Demonstram, melhor do que qualquer debate, as
incongruências legais criadas com o reconhecimento legal de parte das famílias
formadas por casais do mesmo sexo – uniões de facto, matrimónio civil semo
reconhecimento das relações parentais já existentes no interior dessas famílias
ou dos projectos de paternidade/maternidade que estes casais venham a assumir.
O percurso legal feito desde que foi aprovado o ‘casamento sem adopção’ eleva a
hipocrisia a ponto de se considerarem as mesmas pessoas ora aptas ora inaptas
nas suas capacidades parentais.” Em suma, trata-se de uma “discriminação dupla,
dos casais em função da orientações sexual, e das crianças” que não vêem um dos
seus progenitores reconhecido.
Votação
sem data
Processo
demorado e de resultado incerto
O
projecto de lei sobre a co-adopção já chegou à Comissão Parlamentar de
Direitos, Liberdades e Garantias, onde serão feitas as audições que vierem a
ser pedidas pelos partidos, mas ainda não começou a ser trabalhado.
É
um processo demorado e ninguém arrisca avançar com uma data para a votação
final global. Pode ser até ao final da sessão legislativa ou ficar para Setembro.
A aprovação ou chumbo é outra dúvida, dada a escassa margem com que passou na
generalidade (99 votos a favor, 94 contra) e o número de deputados que estavam
ausentes naquele dia, em particular na bancada social-democrata.
A
discussão na especialidade do projecto de lei ainda nem sequer começou. A
primeira comissão tem uma agenda cheia de trabalho, nomeadamente propostas na
área da Justiça. Os partidos podem agora pedir para ouvir especialistas e
entidades. Para tal deverá ser constituído um grupo de trabalho. Só depois de
todas as audições é que podem ser apresentadas alterações ao projecto
socialista. É então marcada a votação na especialidade e só depois é agendada a
votação final global em plenário. É o resultado desta votação que conta para efeitos
legais.
Como
ainda não se discutiram as audições a realizar, nenhuma das bancadas arrisca a
avançar com datas para o fim do processo legislativo. Pode ser até Julho, mas
poderá derrapar para a próxima sessão legislativa, pós-férias de Verão. De
qualquer maneira, o projecto de lei não cai com o fim da actual sessão
legislativa (só acontece com a mudança de legislatura) e todo o trabalho na
especialidade é aproveitado na próxima sessão. Sofia Rodrigues
Público, 3 Junho 2013
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