Na
memória de muitos ainda se ouve o estribilho certeiro da canção de Barata Moura
“Vamos brincar à caridadezinha”, que tão bem caracterizou uma época e um regime
1. No
final de 2012, houve quem, a propósito das opiniões muito pessoais da Dr.ª
Isabel Jonet, procurasse, despropositadamente, reacender um conflito religioso
sem sentido no presente.
Pretenderam
alguns, com efeito, contrapor uma alegada desvalorização que a Igreja faria dos
direitos sociais constitucionais, ante uma opção desta, por um
“assistencialismo” fundado apenas na “caridade cristã”.
Para
consumo interno, tentou-se, nessa base, refazer alinhamentos políticos que
hoje, verdadeiramente, não têm sentido entre nós.
Claro
está que na memória de muitos se ouve ainda o estribilho certeiro da canção de
Barata Moura “Vamos brincar à caridadezinha”, que tão bem caracterizou uma
época, um regime e a colagem de uma entourage a uma certa Igreja que, nessa
altura, prevaleceu em Portugal.
Acontece
que, se já na época a doutrina social da Igreja não era exactamente a que, por
motivos óbvios, era veiculada no nosso país, hoje, quando o acesso à informação
é livre, não podem os portugueses deixar-se enganar tão facilmente com os
mesmos falsos argumentos.
2. Muito
recentemente, aliás, o Papa clarificou a posição da Igreja sobre esta mesma
matéria.
Referindo-se
ao Evangelho do Domingo do Advento, disse o Papa:
“A
justiça destina-se a superar o desequilíbrio entre quem tem o supérfluo e a
quem falta o necessário; a caridade incentiva a ser atento ao outro e a ir ao
encontro dos necessitados, em vez de encontrar justificativas para defender os
próprios interesses. Justiça e caridade não se opõem, mas são ambas necessárias
e completam-se mutuamente.”
A 1 de
Janeiro, no Dia Mundial da Paz, o Papa foi ainda mais explícito:
“Causam
apreensão os focos de tensão e conflito provocados pelas crescentes desigualdades
entre ricos e pobres, pelo predomínio duma mentalidade egoísta e individualista
que se exprime inclusivamente por um capitalismo financeiro desregrado.”
E
acrescentou: “(…) as ideologias do liberalismo radical e da tecnocracia
insinuam, numa percentagem cada vez maior da opinião pública, a convicção de
que o crescimento económico se deve conseguir mesmo à custa da erosão da função
social do Estado e das redes de solidariedade da sociedade civil, bem como dos
direitos e deveres sociais.”
E
concretizou melhor:
“E, entre
os direitos e deveres sociais actualmente mais ameaçados, conta--se o direito
ao trabalho. Isto devido ao facto, que se verifica cada vez mais, de o trabalho
e o justo reconhecimento do estatuto jurídico dos trabalhadores não serem
adequadamente valorizados, porque o crescimento económico dependeria sobretudo
da liberdade total dos mercados.”
Para
concluir: “O modelo que prevaleceu nas últimas décadas apostava na busca da
maximização do lucro e do consumo, numa óptica individualista e egoísta que
pretendia avaliar as pessoas apenas pela sua capacidade de dar resposta às
exigências da competitividade.”
3.
Aqueles que, entre nós, defendem agora um projecto de Estado, na melhor das
hipóteses, “assistencialista” e contrário, na essência, ao que a nossa
Constituição prevê – pois esta reconhece nos direitos sociais a base mínima da
dignidade humana – poderão inspirar--se em muitas doutrinas, mas não será,
porém, com os ensinamentos da Igreja actual que poderão justificar-se.
Cuidado,
pois: contribuir para dividir hoje os portugueses a partir desta falsa querela
doutrinária só favorecerá, porventura, aqueles que, sem nenhum tipo de
caridade, querem atentar contra os seus direitos e a justiça social.
Jurista e
presidente da MEDEL
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