terça-feira, 6 de novembro de 2012

A justiça democrática em risco?

Ante as expressões mais agudas da “crise”, não tardará a acicatar-se, ainda mais furioso, o circo político e jurídico-mediático já instalado
António Cluny*
1. A forma como muitos portugueses, de condição diversa e de cultura e ideias políticas distintas, vão encarar os próximos tempos é, naturalmente, uma incógnita.
As convulsões e as contradições sociais e políticas são inevitáveis, e tenderão a agudizar-se se não se configurarem, para a “crise” que governa os seus destinos, alternativas imediatas e adequadas a patamares e valores civilizacionais que os tempos de hoje exigem e que a nossa Constituição consagra. 2.0 fogo cerrado sobre as magistraturas voltou entretanto a recrudescer: alimenta-se de erros próprios, mas mais ainda do temor de que estas possam afinal vir a desempenhar o imprescindível papel de garante dos direitos constitucionais.
Apesar dos “caudilhismos” de recorte terceiro-mundista que vingaram entretanto nas lideranças de algumas das magistraturas – e sobrevivem mais boçais ainda noutras profissões judiciárias -, a verdade é que os magistrados portugueses têm conseguido, em geral, preservar o essencial do seu mister: a independência.
O regresso da magistratura a tempos de normalidade, de discrição, de estudo, de conhecimento e de trabalho efectivo e isento parece de nada servir afinal para circunscrever esse fogo.
Ante as expressões mais agudas da “crise”, não tardará a acicatar-se, ainda mais furioso, o circo político e jurídico-mediático já instalado. Este tem servido, e dilata oportunamente, sempre que é necessário deslegitimar qualquer intervenção da justiça que se não limite a visar e conter os “zés-ninguéns” desta terra.
3. Com o mesmo objectivo, vai intensificar-se – inapelavelmente – a campanha contra o associativismo judiciário. Quem o faz sabe, mas quer fazer esquecer, que o movimento associativo judiciário – com carácter sindical ou não – está enraizado em toda a Europa e é reconhecido e apoiado pelas instituições europeias, com as quais colabora regularmente.
É, não por acaso, nos países de democracias mais antigas que esse movimento assume, aliás, um forte carácter sindical: por exemplo na França, na Alemanha e na Bélgica.
Com mais ou menos hesitações, ingenuidades e inclusive alguns desacertos, mas acima de tudo quase sempre, com esclarecido sentido de responsabilidade, o movimento associativo judiciário português tem desempenhado um papel relevante na detecção das insuficiências do sistema de justiça e no alerta da cidadania para as tentativas da sua manipulação.
Alguns dos seus erros, designadamente os do uso -já ultrapassado, de resto – de discursos que lhe eram tradicionalmente alheios, resultaram, ainda assim, da necessidade de dar uma resposta cortante aos ataques que, de dentro e de fora, foram estrategicamente lançados para destruir a isenção e a capacidade de intervenção da justiça: “partir-lhe a espinha”.
Por sempre ter denunciado as ingerências de todo o tipo e quadrantes, o associativismo judiciário é pois odiado por todos os serventuários dos interesses que conduziram à “crise” e dela vivem.
4. A força e a sustentação do movimento associativo judicial resultaram sempre, todavia, da sua capacidade de se rever nos problemas da cidadania e, com as naturais especificidades estatutárias, de se saber associar à expressão do sofrimento dos cidadãos.
Hoje, porventura mais do que outras missões, caberá às associações de magistrados alertar os seus associados para a necessidade de compreender a legitimidade democrática das iniciativas cidadãs, do mesmo modo que, com razão, querem ver compreendidas e respeitadas as próprias.
*Jurista e presidente da MEDEL Escreve à terça-feira
i 6 Novembro 2012

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