Sentir o Direito
Por: Fernanda
Palma, Professora Catedrática de Direito Penal
Os
juízes decanos espanhóis uniram-se para reivindicar nova legislação sobre o
despejo de pessoas que deixaram de poder pagar as prestações de
empréstimos para a compra de habitação.
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Esta
tomada de posição surge depois de várias pessoas se terem suicidado e já levou
a uma alteração legislativa, que atrasa por dois anos o despejo de pessoas mais
vulneráveis.
Os dados
que chegam de Espanha são aterradores. No primeiro trimestre de 2012, foram
executados 46 559 despejos (média diária de 517) e estima-se que haja três
suicídios diários por causa da crise. O que está em causa é o cumprimento de
uma lei neutra, baseada em critérios económicos, que não responde ao
empobrecimento e ao desespero crescentes.
Neste
contexto, faz sentido evocar as palavras certeiras de Anatole France: "A
lei, na sua majestosa igualdade, proíbe tanto os ricos como os pobres de dormir
debaixo das pontes, mendigar nas ruas e furtar pão." Os tribunais,
independentes de quaisquer outros poderes, estão obrigados a cumprir leis que
podem conduzir a profundas injustiças sociais.
Todavia,
a atitude dos juízes espanhóis – a meu ver, moralmente obrigatória – revela a
verdadeira natureza da independência do poder judicial. Os tribunais não podem
encarar como um dogma uma norma como o nº 2 do artigo 8º do Código Civil:
"O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser
injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo."
Num
Estado de Direito democrático e social, a ordem jurídica não é composta só por
mecanismos legais e regulamentares – integra princípios constitucionais, como a
dignidade da pessoa, o livre desenvolvimento da personalidade e a igualdade,
que são o primeiro parâmetro das decisões. Os tribunais não podem aplicar
normas que julguem inconstitucionais.
Em boa
medida, os princípios constitucionais correspondem a valores éticos que criam
em redor dos direitos fundamentais uma espécie de direito natural. A posição
assumida pelos juízes espanhóis deriva de uma exigência de justiça elementar e
não de uma qualquer defesa dos seus interesses profissionais ou de quaisquer
outros interesses particulares.
A
Constituição não é uma peça de museu, como pretendem alguns adeptos da sua
revisão. É um texto vivo, constantemente reinterpretado através de decisões
justas e, quando necessário, inovadoras. Prova-o, por exemplo, a decisão do
Tribunal de Portalegre que limitou a quantia em dívida a um banco ao montante
que o próprio banco pagou pelo prédio hipotecado.
CM,
2012.11.18
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