terça-feira, 28 de agosto de 2012

Expresso | terça-feira, 28 Agosto 2012
Artigo de Opinião
António Manuel Hespanha – professor universitário, reformado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Continua a ensinar (na Universidade Autónoma, Lisboa) e em outras lides académicas.
A recente decisão do Tribunal Constitucional (TC) sobre os cortes dos subsídios de funcionários públicos e de reformados tem tido o mérito de trazer cá para fora a sensibilidade constitucional de imensas figuras públicas. Algumas têm formação jurídica e responsabilidades académicas na área. Outras não, e têm invocado isso para estarem mais à vontade ao exprimir opiniões bizarras acerca de como de devia tratar a constituição em tempos de crise.
Os princípios constitucionais invocados pelo TC são daqueles que existem desde que na Europa se descobriu a ideia de um Estado limitado por uma Constituição. Se – como alguns ignorantes têm sugerido – se revisse a constituição para permitir as medidas legislativas agora invalidadas, do que se trataria era, pura e simplesmente, de despedir a constituição (já agora … por inadaptação ao posto de trabalho) e entrar num regime de arbítrio, como o do Brunei, a Coreia do Norte, a Arábia Saudita ou o Vaticano (estes últimos, ainda assim, reconhecem limites espirituais à governação).
Senão, vejamos que princípios estão em causa. Um princípio constitucional atingido teria sido o da violação de direitos adquiridos, afetando o tal princípio da confiança que se deduz logo do art. 2º da CRP. É esta norma que consagra a propriedade de cada um, a validade dos contratos livre e legalmente estabelecidos, o direito às prestações públicas concretamente consagradas na lei, a proibição do confisco, a limitação dos impostos ao que está previsto na lei, etc.. Enfim, coisas básicas, sem as quais dificilmente se concebe que se possa viver numa sociedade civilizada. Que os salários contratados ou as pensões contratadas – e em que os pensionistas até já pagaram a sua parte – sejam direitos adquiridos é algo que poucos discutem – embora os juristas tendam a discutir tudo  – , e que os tribunais portugueses têm considerado uma opinião correta.
Claro que não há direitos absolutos, direitos que não possam ser limitados ou mesmo ignorados em caso de extrema necessidade. Os regimes revolucionários fazem isso; e mesmo muitos outros regimes apenas reformistas ou em situação de extrema necessidade, recorrem ao confisco, à denúncia de contratos e tratados, à retenção de pagamentos, ao não pagamento da dívida; como, ainda mais gravemente, recorrem à prisão arbitrária, à vigilância intrusiva e à tortura. Nos últimos anos, países como o Zimbabué, a Venezuela, a Argentina, a Islândia – com um generalizado escândalo da opinião dominante, diga-se de passagem … – tomaram medidas extraordinárias do primeiro tipo.
Porém, mesmo que adotássemos, em tempo de crise, um regime assim permissivo, não estaríamos ainda livres da maçada de uma constituição (ideológica …). Em primeiro lugar, há três coisas que teriam que ser demonstradas sem margem para dúvidas: (i) que a necessidade existe e é tão extrema como a adoção de medidas da gravidade do confisco; (ii) que estas medidas vão resolver o problema; e (iii) que não há outras saídas para a crise. Provar isto cabalmente é muito mais do que repetir ad nauseam e com cara compungida que não há alternativas, que as que se apresentam são delírios ideológicos e que, em contrapartida, se espera e se fará tudo para que o confisco dê resultado, tal como de resto já antecipam os mercados e a opinião internacional sobre o país. Dizer isto é o mesmo que não dizer nada.
Mas há mais. Admitindo que se provava tudo isto sem recurso à retórica, com honestidade e com rigor, a tal de Constituição ainda tem um outro princípio – o princípio da igualdade -, também ele crucial (talvez ainda mais do que o anterior) e insuscetível de revisão. Se se riscar da Constituição o princípio da igualdade, fica instaurado o arbítrio e desaparece de todo o Estado constitucional. Aqui, nem a extrema necessidade vale como escapatória. Pelo contrário, ainda reforça mais a necessidade de, nestes momentos de aperto, todos contribuírem por igual para salvar a comunidade. A salvação de todos exige o sacrifício de todos. Chocantemente inconstitucional, à luz de qualquer constituição, e imoral, à luz de qualquer moral própria de humanos, seria que, para salvar todos, só alguns se sacrificassem. O TC invocou também este princípio da igualdade – os rendimentos do trabalho, público ou privado, devem ser tratados do mesmo modo. Infelizmente, a formulação foi incompleta, demasiado estreita, e isso tem permitido uma enorme manipulação da sua discussão.
A igualdade é um princípio universal, que abrange todos os sacrifícios. Do que o país precisa, não é de sacrifícios dos trabalhadores (por conta de outrem …), é de sacrifícios de todos. Ou seja, se estamos em guerra, todos têm que contribuir para a guerra de todos. Para isso, a contribuição de guerra tem que ser repartida por todos os rendimentos: salários, lucros de empresas, dividendos distribuídos, remunerações de PPPs (declaradas imorais e lesivas do Estado pelo e pelas próprias instituições internacionais financiadoras), ganhos de mais-valias, rendimentos exportados para paraísos fiscais ou para países de regime fiscal mais favorável, ativos de grandes fortunas, consumos sumptuários, etc.. Para não falar dos proventos da enormidade da fraude fiscal e da florescente economia paralela.
Ora desta realização do princípio da igualdade nunca se fala, apesar de até já terem surgido propostas legislativas nesse sentido. Oportunisticamente, todos se concentram na formulação restrita do princípio da igualdade que se encontra no acórdão do TC, e omitem as consequências de uma formulação geral desse princípio, que englobe todos os rendimentos e não apenas os daqueles que são mais fracos e que estão mais à mão. Além de apontar para soluções muito mais justas, esta formulação genérica conduz a soluções economicamente mais razoáveis e mais adequadas ao objetivo de suster a crise.
Sair da constitucionalidade é bastante fácil, sobretudo quando se cobre o país de um fogo cerrado de medos e de ameaças catastróficas, a que o próprio TC sucumbiu em acórdãos anteriores. Mas voltar à constitucionalidade é muito difícil, sobretudo se as soluções ilegítimas foram levianamente dadas como favas contadas. Única vantagem: fazer a prova dos nove quanto à devoção de muitos opinativos pelo núcleo duro de um Estado constitucional. Todos os oportunistas reduzem tudo à oportunidade. Uma constituição pode-lhes convir muito pouco, mas convém-nos muito a nós todos, os muitos.

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