terça-feira, 27 de março de 2012

Singing in the rain, a balada da justiça e da política – III


Ao falar das relações entre a política e a justiça, raramente se invoca um factor que muito contribui para os equívocos e os conflitos que as transtornam. Refiro-me ao problema da lei.
É através das leis aprovadas pelos governantes que os tribunais procuram, nas sociedades modernas, fazer justiça.
Sófocles, na “Antígona”, mostrou, faz milhares de anos, os problemas que a lei escrita é capaz de suscitar quando confrontada com sentimentos profundos de justiça que vigoram numa sociedade.
Na verdade, o nível de desenvolvimento económico, social e cultural de uma sociedade traduz-se sempre numa concepção de justiça que pode estar (ou não) vertida nas leis escritas. No século passado era já impensável admitir uma lei que permitisse a escravatura.
Do mesmo modo, podemos dizer hoje que a lei que consinta trabalho sem salário justo – aquele que possibilita a quem o realiza e à família uma vida digna e não a pura sobrevivência – viola as concepções actuais de justiça. Essas concepções estão, em regra, consubstanciadas nas Constituições modernas e nas grandes cartas internacionais de direitos fundamentais. Traduzem o pacto social estabelecido entre os principais sectores da sociedade para que, de acordo com os meios da civilização actual, possamos viver juntos e em paz.
Hoje, na Europa, as leis que pretendem comprimir os princípios-base do equilíbrio e controlo económico e social das sociedades modernas ou os seus direitos fundamentais não atentam já, declaradamente, contra os princípios constitucionais. Contornam-nos. Assiste-se assim à redacção, menos incompetente e ingénua do que parece, de leis ambíguas e até contraditórias.
Os exemplos são inúmeros: quase tantos quantas as leis. Quem por acaso tiver estado atento as mais recentes decisões do Tribunal de Contas sobre o sistema de contratação pelo Estado de serviços jurídicos privados ou procurar compreender o emaranhado de leis, decretos-lei e portarias que regulam, revogam e repristinam componentes salariais dos diversos estatutos remuneratórios dos trabalhadores da administração pública, e das Forças Armadas e policiais percebe exactamente do que estou a falar. O mesmo sucede, de resto, relativamente às normas que regem o uso e a exploração privada dos recursos naturais, que são bens comuns da humanidade e cujo benefício, por isso, se exigiria claro e rigoroso.
O legislador do século XIX produziu o movimento codificador que obedecia a regras de cientificidade, sistematização e sintetização, tomando as normas compreensíveis e aplicáveis pelos próprios cidadãos.
Ao invés, as leis que hoje temos são elas mesmas fonte de litigiosidade e por isso da intercessão necessária e permanente do sistema judicial. Ao provocar uma interposição constante dos tribunais na interpretação das obscuras normas que executam as políticas governamentais, além de se bloquear a justiça, obriga-se esta, também, a interferir politicamente. Impede-se que os tribunais tratem privilegiadamente e com celeridade dos direitos dos cidadãos, permite-se que a morosidade torne inútil e dispendioso o recurso à justiça, prejudica-se, na prática, os que, teoricamente, a lei se propõe proteger. Por fim, se convier, ainda se pode acusar a justiça de fazer política ou prejudicar a economia.
Falar da judicialização da política sem assumir esta questão ou é pura ingenuidade ou é má-fé. Uma reforma séria da justiça exige por isso, também, uma reflexão sobre a verdade e a qualidade das leis.
António Cluny, Jurista e presidente da MEDEL
ionline de 27-03-2012

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