Seria lamentável que por um nacionalismo legislativo a Grã-Bretanha viesse a afastar-se do TEDH
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: um conflito aceso
No Reino Unido, o conflito com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) mantémse aceso, havendo mesmo quem defenda abertamente que o país deverá deixar de aceitar a jurisdição do TEDH, mesmo que para isso seja necessário abandonar o Conselho da Europa.
O clímax do confronto entre o Reino Unido e o TEDH aconteceu no passado mês de Fevereiro, quando o Parlamento britânico, numa votação de 234 para 22, decidiu “desobedecer” ao TEDH e reafirmar a legislação que tinha sido considerada, por este, estar em conflito com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Convenção).
A legislação em causa é, para nós portugueses, algo absurda e diria que ninguém de bom senso e com responsabilidades no nosso país a defenderia: na Grã-Bretanha, os presos, seja qual for o crime porque tenham sido condenados, não têm direito de voto. Consideram os deputados britânicos que só se vai para a prisão pela prática de crimes graves, isto é, em consequência de uma quebra grave do contrato que temos com a sociedade e que, em consequência dessa violação contratual, o cidadão perde não só a sua liberdade, como o seu direito de voto, independentemente do crime que tenha cometido.
Ora o TEDH em 2005, no caso Hirst contra o Reino Unido, considerou que tal proibição absoluta de voto a qualquer preso, só pelo facto de estar a cumprir uma pena, violava o direito a eleições livres, consagrado no artigo 3.° do 1.° Protocolo à Convenção. O TEDH não decidiu que a Grã-Bretanha devia conceder o direito de voto a toda a sua população prisional, mas tão-somente que deveria clarificar a legislação existente, acabando com a proibição absoluta de voto de todos os presos.
Esta decisão veio alimentar os anseios eurofobicos nas ilhas britânicas e criar o impasse actual em que se delineiam estratégias que poderão levar David Cameron a incluir no manifesto eleitoral para 2015 uma redução dos “poderes” do TEDH que implicaria o abandono da Convenção. Ao mesmo tempo, o anterior presidente do TEDH Jean-Paul Costa lembrou publicamente que o único país que, desde o início da Convenção em 1950, a denunciou, recusando a jurisdição do TEDH, foi, em 1967, a Grécia, então sob um regime de ditadura. E, embora compreendendo alguma irritação britânica com a decisão em causa do TEDH, considerou inimaginável a ideia de o Reino Unido se poder colocar na mesma situação da Grécia dos coronéis.
Convém, talvez, lembrar o que é o TEDH para melhor podermos perceber o que está em causa. O TEDH tem jurisdição sobre 47 países. Os juizes são eleitos por um mandato de nove anos não renovável, pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Qualquer Estado contratante ou qualquer particular (pessoas singulares, grupos de particulares ou organizações não governamentais) que se considere vítima de uma violação da Convenção pode dirigir directamente ao Tribunal de Estrasburgo uma queixa alegando a violação por um Estado contratante de um dos direitos garantidos pela Convenção. O TEDH, após um processo contraditório e público, em que queixoso e Estado são ouvidos, pronuncia-se, declarando ter havido ou não uma violação da Convenção e determinando as medidas subsequentes.
Este tribunal representa, em termos da arquitectura jurídica supranacional, uma verdadeira jóia pela sua raridade e pela sua qualidade, já que permite a cidadãos individuais queixarem-se contra os Estados por atentados aos seus direitos fundamentais consagrados na Convenção e tem uma notável jurisprudência estabelecida de salvaguarda dos direitos dos cidadãos europeus. Consagra, naturalmente, este tribunal uma aceitação pelos Estados de uma redução da sua soberania a favor do TEDH, em nome das garantias dos direitos individuais dos cidadãos. Saliente-se ainda que os cidadãos só podem recorrer ao TEDH quando já estiverem esgotados todos os recursos internos do Estado de que se pretendem queixar, para reparar a alegada violação dos direitos dos seus cidadãos. E o TEDH não é um tribunal de recurso contra decisões nacionais que se consideram erradas, já que só aprecia as decisões nacionais em termos da sua compatibilidade ou não com o disposto na Convenção.
Entre os direitos consagrados na Convenção contamse o direito à vida, a proibição da tortura, a proibição da escravatura e do trabalho forçado, o direito à liberdade e à segurança, o direito a um processo equitativo, o princípio da legalidade, o direito ao respeito pela vida privada e familiar, a liberdade de pensamento, de consciência e de religião, as liberdade de expressão, de reunião e de associação, o direito ao casamento, o direito a um recurso efectivo e a proibição de discriminação. Com os protocolos que entretanto foram assinados, foram ainda consagrados, entre outros, a protecção da propriedade, o direito à instrução, o direito a eleições livres, a proibição da prisão por dívidas, a liberdade de circulação, a proibição da expulsão de nacionais e a proibição de expulsão colectiva de estrangeiros.
É por de mais evidente que seria lamentável, e acreditase que não acontecerá, que, por um nacionalismo legislativo de muito discutível relevância, a Grã-Bretanha viesse a afastar-se deste notável organismo internacional. Na verdade, para nós portugueses que acreditamos, pelo menos em termos legislativos, que a prisão deve sempre ser vista como uma passagem no sentido da reinserção, parece mesmo uma aberração a privação da participação dos presos na vida política da sociedade, em termos do direito de voto. Espera-se, assim, que o bom senso prevaleça…
Público, 30 de Julho de 2011
Francisco Teixeira Mota
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