quinta-feira, 3 de novembro de 2005

Austeridade ou “luta contra os privilégios”

«Só que o governo e em particular Sócrates, introduziu um irritante muito especial, nos conflitos sociais. E não havia necessidade nenhuma de o introduzir, porque parece bom para o governo, mas é mau para nós todos. Para isolar a contestação às suas medidas de contenção e ganhar a opinião pública, apresentou-as como instrumentos de combate aos “privilégios e mordomias”, como medidas igualitárias, contra meia dúzia de privilegiados.
Conseguiu o que queria: ter a opinião pública consigo, tornando as greves e manifestações impopulares. Só que gerou outro efeito que pode passar despercebido, mas que a prazo se verá corno sobrelevará a impopularidade circunstancial das medidas — radicalizou a contestação classe a classe, grupo profissional a grupo profissional muito para além do que seria necessário. Transformou uma incomodidade e uma dificuldade numa irritação que o isolamento das corporações ainda mais atiça.
Se tivéssemos uma comunicação social menos situacionista, a amplitude e veemência dos conflitos, o tamanho das manifestações seria um sinal de alarme. Só que, como os grevistas e manifestantes não têm consigo a opinião pública, toda a máquina do consenso governamental funciona contra eles e rádios, jornais, televisões podem dar-se ao luxo de ocultar a amplitude do movimento. Outro dia vi uma enorme manifestação na rua, que me surpreendeu pelo número de manifestantes, mas debalde a procurei nos noticiários de televisões e rádios. Claro que o que o governo fez foi deitar achas no sempre popular e demagógico igualitarismo, sem cuidar que talvez as pessoas aceitassem melhor as medidas de contenção se elas fossem justificadas apenas como medidas de austeridade num momento difícil, onde se exige o esforço de todos. Não haveria assim uma humilhação profissional evitável.
Mas o governo na ânsia de popularidade foi mais longe, tratou-as de “privilégios”, esquecendo que cm muitos casos essas medidas foram contrapartidas de outras e foram benesses do Estado, nas quais há muita responsabilidade dos principais partidos de govcrno O que hoje existe não é difícil de entender, Na cultura cívica dos portugueses o igualitarismo é muito forte, o que aliás é típico dos países pobres. Logo, todos os portugueses se levantam em uníssono a clamar que todos sejam iguais e contra os malvados dos privilegiados, enquanto que cada um, em particular e no seu grupo profissional, defende com unhas e dentes o seu direito a ser desigual. Nada que não venha nos livros. Atiçando este caldeirão, o governo tem a opinião pública (e a comunicação social) com ele, e está todo contente e pode prometer a maior firme7.a. Só que chegará a altura em que para progredirmos, para andarmos para a frente, temos mesmo dc ser diferentes, e o governo, se chegar a essa fase, perceberá como deitou fora o menino e a água do banho. »

Pacheco Pereira - SÁBADO - 28NOV05

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