domingo, 10 de julho de 2005

As corporações e a república


Infelizmente, foi preciso o problema do défice orçamental ter atingido a gravidade que se conhece para situações inadmissíveis numa república e num país como o nosso surgirem à luz do dia. E não sei se o actual Governo terá a fortaleza e a perseverança suficientes para levar até ao fim a sua correcção. Como quer que seja, deve ser louvado por anunciar reformas que sucessivos governos, ao longo dos anos, não quiseram ou não puderam empreender.

Não menos chocantes do que muitas situações viriam a ser, porém, as reacções corporativas logo desencadeadas - ora disfarçadas sob a forma de reivindicações sindicais, ora invocando pretensos direitos adquiridos, ora intentando manter insustentáveis regimes especiais ou excepcionais. Causa espanto que se manifestem tantos egoísmos corporativos e tanta falta de solidariedade nacional!
Paradigmáticos são, entre vários casos que poderiam ser referidos, os casos dos professores sindicalistas do ensino básico e secundário, de alguns juízes, de presidentes de câmara municipal e de deputados. Paradigmáticos e difíceis de entender, em face do lugar eminente que ocupam na sociedade e do magistério cívico que lhes deveria estar associado.
(...)
Outro caso: a reacção de alguns juízes perante certas medidas anunciadas pelo Governo. Os juízes, os magistrados do Ministério Público e quantos trabalham nos tribunais (não raro em condições precárias) merecem todo o respeito. No entanto, justamente por isso, eles devem dar-se ao respeito, não fazendo declarações, movimentações e ameaças de greve que contrariam o seu estatuto constitucional de titulares de órgãos de soberania. Então os órgãos de soberania podem fazer greve? Admiti-lo, admitir as formas de luta que alguns juízes reclamam, equivaleria a pôr em causa o próprio Estado.
(A este propósito, vale a pena perguntar se, em vez da redução das férias judiciais, outra providência legislativa não deveria ser adoptada: a proibição absoluta de qualquer juiz ou qualquer magistrado do Ministério Público desempenhar funções estranhas aos tribunais. E isso não tanto por causa da multiplicação de processos quanto por imperativo de dignidade das respectivas funções. Como conceber um juiz - que deve ser isento politicamente e independente - a assumir cargos políticos ou de confiança política? Não representa tal o contrário da atitude que os deve marcar? E como conceber que depois voltem à carreira e até, por vezes, venham a ser promovidos?
(...)
Mais do que o respeito do princípio republicano como princípio jurídico, está aqui em causa a ética republicana como ética de responsabilidade, de exigência cívica e de desprendimento ao serviço do interesse geral. Esperamos que ela venha a prevalecer!

Jorge Miranda, Público, 09Jul05

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