sexta-feira, 30 de novembro de 2007

O progresso... para quem não teve a ocasião de ler

A meia dúzia de lavradores que comercializam directamente os seus produtos e que sobreviveram aos centros comerciais ou às grandes superfícies vai agora ser eliminada sumariamente. Os proprietários de restaurantes caseiros que sobram, e vivem no mesmo prédio em que trabalham, preparam-se, depois da chegada da fast food, para fechar portas e mudar de vida. Os cozinheiros que faziam no domicílio pratos e "petiscos", a fim de os vender no café ao lado e que resistiram a toneladas de batatas fritas e de gordura reciclada, podem rezar as últimas orações. Todos os que cozinhavam em casa e forneciam diariamente aos cafés e restaurantes do bairro sopas, doces, compotas, rissóis e croquetes podem sonhar com outros negócios. Os artesãos que comercializam produtos confeccionados à sua maneira vão ser liquidados. A solução final vem aí. Com a lei, as políticas, as polícias, os inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão. Ninguém, deste velho mundo, sobrará. Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa os computadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos e matérias-primas industriais e quem não quer ser igual a toda a gente está condenado.
Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm estado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados cientistas do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela carismática do ministro da Economia e da Inovação, Manuel Pinho; e agem através pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas certamente a mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel da ração e pelos impérios do açúcar.
Em frente à faculdade onde dou aulas, há dois ou três cafés onde os estudantes, nos intervalos, bebem uns copos, conversam, namoram e jogam às cartas ou ao dominó. Acabou! É proibido jogar! Nas esplanadas, a partir de Janeiro, é proibido beber café em chávenas de louça, ou vinho, águas, refrigerantes e cerveja em copos de vidro. Tem de ser em copos de plástico.
Vender, nas praias ou nas romarias, bolas-de-berlim ou pastéis de nata que não sejam industriais e embalados? Proibido. Nas feiras e nos mercados, tanto em Lisboa e Porto, como em Vinhais ou Estremoz, os exércitos dos zeladores da nossa saúde e da nossa virtude fazem razias semanais e levam tudo quanto é artesanal: azeitonas, queijos, compotas, pão e enchidos. Na província, um restaurante artesanal é gerido por uma família que tem, ao lado, a sua horta, donde retira produtos como alfaces, feijão verde, coentros, galinhas e ovos? Acabou. É proibido. Embrulhar castanhas assadas em papel de jornal? Proibido. Trazer da terra, na estação, cerejas e morangos? Proibido. Usar, na mesa do restaurante, um galheteiro para o azeite e o vinagre é proibido. Tem de ser garrafas especialmente preparadas. Vender, no seu restaurante, produtos da sua quinta, azeite e azeitonas, alfaces e tomate, ovos e queijos, acabou. Está proibido. Comprar um bolo-rei com fava e brinde porque os miúdos acham graça? Acabou. É proibido.
Ir a casa buscar duas folhas de alface, um prato de sopa e umas fatias de fi ambre para servir uma refeição ligeira a um cliente apressado? Proibido. Vender bolos, empadas, rissóis, merendas e croquetes caseiros é proibido. Só industriais. É proibido ter pão congelado para uma emergência: só em arcas especiais e com fornos de descongelação especiais, aliás caríssimos. Servir areias, biscoitos, queijinhos de amêndoa e brigadeiros feitos pela vizinha, uma excelente cozinheira que faz isto há 30 anos? Proibido.
As regras, cujo não cumprimento leva a multas pesadas e ao encerramento do estabelecimento, são tantas que centenas de páginas não chegam para as escrever. Nas prateleiras, diante das garrafas de Coca-Cola e de vinho tinto tem de haver etiquetas a dizer Coca-Cola e vinho tinto. Na cozinha, tem de haver uma faca de cor diferente para cada género. Não pode haver cruzamento de circuitos e de géneros: não se pode cortar cebola na mesma mesa em que se fazem tostas mistas. No frigorífico, tem de haver sempre uma caixa com uma etiqueta "produto não válido", mesmo que vazia. Cada vez que se corta uma fatia de fiambre ou de queijo para uma sanduíche, tem de se colar uma etiqueta e inscrever a data e a hora dessa operação. Não se pode guardar pão para, ao fim de vários dias, fazer torradas ou açorda. Aproveitar outras sobras para confeccionar rissóis ou croquetes? Proibido. Flores naturais nas mesas ou no balcão? Proibido. Têm de ser de plástico, papel ou tecido. Torneiras de abrir e fechar à mão, como sempre se fizeram? Proibido. As torneiras nas cozinhas devem ser de abrir ao pé, ao cotovelo ou com célula fotoeléctrica. As temperaturas do ambiente, no café, têm de ser medidas duas vezes por dia e devidamente registadas. As temperaturas dos frigorífi cos e das arcas têm de ser medidas três vezes por dia, registadas em folhas especiais e assinadas pelo funcionário certifi cado. Usar colheres de pau para cozinhar, tratar da sopa ou dos fritos? Proibido. Tem de ser de plástico ou de aço. Cortar tomate, couve, batata e outros legumes? Sim, pode ser. Desde que seja com facas de cores diferentes, em locais apropriados das mesas e das bancas, tendo o cuidado de fazer sempre uma etiqueta com a data e a hora do corte. O dono do restaurante vai de vez em quando abastecer-se aos mercados e leva o seu próprio carro para transportar uns queijos, uns pacotes de leite e uns ovos? Proibido. Tem de ser em carros refrigerados.
Tudo isto, como é evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde. Para modernizar a economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, com estas regras, fiscalizar e ordenar as nossas casas.
Para nosso bem, pois claro.
António Barreto Retrato da Semana - in Publico 25.11.2007

Fiscalização da constitucionalidade

O Presidente da República solicitou ao Tribunal Constitucional fiscalização preventiva de normas do diploma que estabelece regimes de vinculação, carreiras e remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas.
Uma das questões colocadas pelo Presidente da República à apreciação do Tribunal Constitucional incide sobre a aplicação do referido diploma aos magistrados judiciais.
E os magistrados do Ministério Público?

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Casa da Supplicação

Regime concretamente mais favorável - aplicação da lei no tempo - Supremo Tribunal de Justiça - reabertura da audiência
1 – Se o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou pela aplicação de uma pena de prisão, em vez de uma pena de multa e sobre a inexistência de requisitos para suspensão da execução da pena, não tem de se pronunciar sobre o pedido de aplicação do regime mais favorável introduzido pela Lei n.º 59/2007 no C. Penal, pois que as alterações introduzidas não eram relevantes no caso, pois já anteriormente se poderia ter optado por pena não detentiva e se poderia ter suspendido a execução da pena.
2 – Esse requerimento não impede o trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça que deverá, não obstante, remeter a apreciação formal do pedido de reabertura da audiência à luz do art. 371.º-A do CPP, para a 1.ª Instância.
AcSTJ de 27.11.2007, proc. n.º 2795/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
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Fraude fiscal - crimes de perigo - lugar da prática do facto - competência territorial
I - O STJ tem-se pronunciado sobre a natureza do crime de fraude fiscal do art.º 23.º do RJIFNA, dizendo que se trata de um crime de perigo, pois que não se exige a obtenção da vantagem patrimonial em prejuízo do Fisco e apenas a conduta tipificada que vise essa vantagem; e menciona-se ainda “a vantagem patrimonial pretendida” e não a obtida.
II - E tem afirmado que se consuma quando o agente, com a intenção de lesar, patrimonialmente, o Fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidos na relação Fisco-contribuinte, através de qualquer das modalidades de falsificação previstas no n.º 1 do referido art.º 23.º, ainda que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar.
III - Actualmente o crime de fraude fiscal está previsto pelas disposições conjugadas dos art.ºs 103.º, n.º 1, als. a), b) e c) e 104.°, n.º 1, al. a), d) , e) f) e n.º 2 da Lei 15/2001, de 05/06, mas que nada mudam neste domínio, mantendo-se como crime de perigo, que se consuma independentemente do dano.
AcSTJ de 27-11-2007, Proc. 3324/07-5, Relator: Cons. Santos Carvalho
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Habeas corpus - prazo da prisão preventiva - reenvio do processo – nulidade - nulidade de sentença
I - A decisão de reenvio não tem por fundamento a nulidade da sentença e, portanto, não determina a sua anulação, mas obriga a que a sentença venha a ser reapreciada, total ou parcialmente, num novo julgamento.
II – No reenvio a sentença reenviada fica sujeita a reapreciação pelo tribunal da mesma hierarquia, mas mantém-se, sob efeito suspensivo, enquanto não for revogada. Aliás, o tribunal competente para o novo julgamento pode, após sanar o vício detectado pelo tribunal superior, limitar-se a confirmá-la.
III - Daí que careça de fundamento legal a afirmação dos peticionantes de que, após a decisão de reenvio para realização de novo julgamento na sua totalidade, “a tramitação processual recuou ao momento anterior ao julgamento, não existindo, assim, julgamento e qualquer condenação”, pois existe uma condenação, não transitada em julgado, ainda sujeita a reapreciação.
IV – Por isso, apesar do reenvio ordenado pela Relação em relação à totalidade do processo, o prazo da prisão preventiva conta-se nos termos da al. d) e não da al. c), do n.º 1 do art.º 415.º do CPP07, e, como o processo foi declarado de excepcional complexidade, o prazo máximo é agora de 3 anos e 4 meses (n.º 3 da mesma disposição) e esgotar-se-á apenas em 30/03/2008.
V – A mesma solução é de adoptar nos casos em que a sentença condenatória é anulada, no sentido de que na nulidade o acto existe, apenas não produz ou pode não produzir os efeitos para que foi criado, ante uma falta ou irregularidade no tocante aos seus elementos internos.
AcSTJ de 27-11-2007, Proc. 4447/07-5, Relator: Cons. Santos Carvalho

Notícias da Amnistia Internacional

Moratória de pena de morte em todo o mundo
A 3.ª Comissão da Assembleia Geral da ONU acaba de aprovar uma resolução histórica a favor de uma moratória da pena de morte em todo o mundo.
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Libertado de Guantánamo
A luta da Amnistía Internacional pelo fecho definitivo de Guantánamo, continua a dar boas notícias. A última foi a liberatação do preso Mohammed al-Amin. Depois da sua libertação fez chegar à Amnistia Internacional a seguinte mensagem: "[...] Pude aprender em primeira mão como os métodos da Amnistía, claramente, marcam a diferência [...]".

Casa da Supplicação

Atenuação especial da pena - In dúbio pró reo - Declarações de co-arguido - Matéria de facto - Poderes de cognição do STJ
1 – A apreciação da questão de facto, impugnada amplamente à luz do princípio de livre apreciação da prova, ou à luz dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cabe exclusivamente às Relações (art.ºs 427.º e 428.º do CPP), escapando aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, a quem cabe sindicar exclusivamente a questão de direito (art. 432.º do CPP).
2 – Nos recursos interpostos da 1.ª Instância ou da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação, que, nos termos do art. 428.º conhece de facto e de direito.
3 – A revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do CPP, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»), e deixou de fazer sentido – em caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei n.º 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.º n.º 1).
4 – Não há qualquer impedimento legal em que as declarações dos co-arguidos sejam valoradas, segundo o prudente critério do tribunal, em conjunto com os outros meios de prova. O art. 133º do CPP apenas proíbe que os arguidos sejam ouvidos como testemunhas uns dos outros, ou seja, que lhes seja tomado depoimento sob juramento, mas não impede que os arguidos de uma mesma infracção possam prestar declarações no exercício do direito, que lhes assiste, de o fazerem em qualquer momento do processo, nada impedindo que o arguido preste declarações sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, ou seja, tanto sobre factos que só ele digam directamente respeito, como sobre factos que respeitem a outros arguidos.
5 – No mesmo sentido já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no aresto citado e com a limitação indicada, hoje normativizada na nova redacção do art. 345.º, n.º 4 do CPP dada pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto.
5 – O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.
6 – Saber se um Tribunal de instância deveria ter ficado na dúvida sobre determinados factos é uma questão de facto que escapa igualmente aos poderes de cognição do STJ.
7 – Com a atenuação especial da pena prevista no art. 72.º do C. Penal criou-se uma válvula de segurança para situações particulares, nas quais, a imagem global por contraposição ao conjunto de casos que o legislador considerou no momento de fixação da moldura penal abstracta, respectiva, exige uma moldura penal menos severa.
AcSTJ de 27.11.2007, proc. n.º 3872/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
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Omissão de pronúncia - Suspensão da execução da pena
1 – Se o tribunal aplica uma pena de prisão não superior a 3 anos, tem sempre de apreciar fundamentadamente a possibilidade de suspender a respectiva execução, pelo que não pode deixar de indagar pela verificação das respectivas condições (prognose e necessidades de prevenção) e exarar o resultado dessa indagação, decidindo em conformidade.
2 – Se o não fizer, o tribunal deixa de se pronunciar sobre questão que devia apreciar, pelo que é nula a decisão, que o Tribunal Superior pode conhecer mesmo oficiosamente, designadamente quando vem impugnada a não suspensão da execução da pena e, pela referida omissão, fica prejudicado o reexame pedido de tal questão.
AcSTJ de 27.11.2007, proc. n.º 3862/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
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Fixação de jurisprudência - Recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada - Prazo de interposição
1 – A natureza e finalidade do recurso extraordinário de decisão contra jurisprudência fixada – destinado a assegurar a eficácia dessa jurisprudência ou o seu reexame se for de entender que está ultrapassada (arts. 445.º, n.º 3 e 446.º, n.º 3, do CPP) – pressupõe necessariamente o prévio trânsito em julgado dessa decisão, pois só a partir desse trânsito se torna efectiva a situação de decisão contra aquela jurisprudência, situação que a lei pretende seja obrigatoriamente apreciada em recurso extraordinário com o referido objecto.
2 – Esse trânsito não é obstáculo à eficácia da decisão, a proferir nesse recurso extraordinário, relativamente ao processo em que foi interposto, atento o que dispõe o art. 445.º, n.º 1, ex vi art. 446.º, n.º 2, ambos do CPP.
3 – Não existe assim lacuna de previsão, resultante da impossibilidade de adequada aplicação da norma do art. 438.º, n.º 1, ao recurso do art. 446, n.º 1, pelo que não há lugar à aplicação subsidiária, nos termos do art. 448.º, da norma reguladora dos recursos ordinários constante do art. 411.º, n.º 1, todos do CPP.
4 – Se for interposto antes daquele trânsito, tem de ser rejeitado, por não ser admissível, nos termos do art.º 441.º, n.º 1, do CPP, aplicável “ex-vi” do supra referido art. 446.º, n.º 2.
AcSTJ de 27.11.2007, proc. n.º 3871/07-5, Relator: Cons. Simas Santos

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Casa da Supplicação

Habeas corpus – Prazo de prisão preventiva – Dedução da acusação – Notificação
1 – Sendo deduzida acusação antes de decorrer o prazo de prisão preventiva, este alonga-se, mesmo que a notificação venha a ter lugar depois do decurso do primitivo prazo.
2 – Aliás, o legislador quando quis atribuir a relevância à notificação da acusação e não à sua dedução disse-o claramente na al. b) do n.º 1 do art. 120.º do Código Penal.
AcSTJ de 22.11.2007, proc. n.º 4446/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
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Omissão de pronúncia – Regime de jovem delinquente – Violação – Atenuação especial da pena – Medida da pena
1 – O poder de atenuar especialmente a pena aos jovens delinquentes é um verdadeiro poder-dever. Ou seja, perante a idade entre 16 e 21 anos do arguido, o tribunal não pode deixar de investigar se e verificam aquelas sérias razões, e se tal acontecer não pode deixar de atenuar especialmente a pena. Não o fazendo, deixa de decidir questão de que devia conhecer e consequente de cometer a nulidade de omissão de pronúncia do art. 379.º, n.º 1, al. c), primeira parte, do CPP.
2 – O art. 72.º do C. Penal ao dispor que o Tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (n.º 1), enumerando o n.º 2 diversas dessas circunstâncias, criou uma válvula de segurança para situações particulares, para situações que escapam ao complexo "corrente e normal" de casos que o legislador teve em consideração quando estabeleceu a moldura penal abstracta correspondente.
3 – Para essas hipóteses em que ocorrem circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, por via da redução sensível da culpa, da ilicitude ou da necessidade da pena, substituiu-se a moldura penal prevista para o facto por outra menos severa.
4 – Não é de atenuar especialmente a pena de um arguido que cometeu 1 crime de violação consumado, 1 crime de violação tentada e um roubo tentado, se não há confissão nem arrependimento, mas mera admissão de um dos comportamentos, sem grande relevo para a descoberta da verdade e a não está provado que a sua personalidade tenha tido influência nas condutas em apreciação, diminuindo consideravelmente a culpa, a ilicitude ou a necessidade da pena.
5 – Em síntese pode dizer-se que as expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade respeitando o limite da culpa.
6 – É mais adequada, no caso, a pena de 5 anos pelo crime consumado do que a pena aplicada de 6 anos, atendendo à idade do arguido (21 anos), à sua personalidade, à sua inserção familiar e social e aos hábitos do trabalho, circunstâncias que merecem mais expressão ma pena concreta.
AcSTJ 22.11.2007, proc. n.º 1600/07-5, relator Cons. Simas Santos

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A situação da Justiça Penal em Portugal



Jantar Debate com o Sr. Procurador – Geral da República



No próximo dia 22 de Novembro, 20:00H, no Hotel Quinta das Lágrimas


Coimbra


Casa da Supplicação

Nulidade processual - prova proibida - leitura permitida de autos e declarações - sentença * fundamentação - facto ilícito - factos relevantes - direito de defesa
I - Há que distinguir as nulidades processuais de que tratam os art.ºs 118.º e segs. dos «meios proibidos de prova», de que trata o art.º 126.º.
II - A «nulidade» cominada pelo art. 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal não pode ser vista como uma «nulidade dos actos processuais» nem lhe cabe o regime processual dos art.ºs 118.º e ss., pois o próprio art.º 118.º sublinha expressamente, no seu n.º 3, que «as disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova».
III – A «nulidade» dos métodos proibidos importa sempre, quanto à sua «admissibilidade», a «proibição da sua utilização» e, quanto ao seu «valor», a «irrelevância» dos métodos proibidos porventura utilizados».
IV - De acordo com o art.º 355.º do CPP, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, com ressalva das provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas. E, em princípio e salvo excepções que não vêm aqui ao caso, só podem ser lidos na audiência os autos de inquirição prestados perante o juiz (art.º 356.º).
V - Assim, o tribunal recorrido não devia ter mencionado, ainda que para fundamentar a sua convicção, as inquirições prestadas por certas testemunhas em sede de inquérito, como sendo contraditórias com as prestadas na audiência.
VI – Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal.
AcSTJ de 15/11/2007, Proc. 3236/07-5, Relator: Cons. Santos Carvalho
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Concurso superveniente de infracções - cúmulo jurídico - suspensão da execução da pena - pena de prisão
I – No concurso superveniente de crimes, nada impede que na formação da pena única entrem penas de prisão efectiva e penas de prisão suspensa, decidindo o tribunal do cúmulo se, reavaliados em conjunto os factos e a personalidade do arguido, a pena única deve ou não ficar suspensa na sua execução
II - A decisão recorrida suscita a questão de, estando o recorrente a cumprir uma pena efectiva de prisão, não poder beneficiar do concurso de infracções, já que à pena que está a cumprir na prisão acresce uma outra e não seria lógico ou desejável para a ordem jurídica que, por força desse acréscimo, saísse em liberdade. E só por esse motivo optou pela pena efectiva de prisão, pois não indicou quaisquer exigências de prevenção geral ou especial que tal solução impusesse.
III - Todavia, a pena única é uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente e, assim, os factos de que se tem conhecimento superveniente no processo onde se vai a fixar tal pena única, isto é, os factos provados no(s) outro(s) processo(s) onde há crimes em concurso, podem fornecer uma imagem diferente, eventualmente mais desculpabilizante, pois os meios de recolha de prova nem sempre são os mesmos e os mais fiáveis.
IV - A suspensão da pena resulta de um juízo de prognose actual, aferido pelo momento da sentença e não pela data do cometimento do crime e a lei impede que a pena única seja inferior à mais grave das penas parcelares, mas não obsta que a mesma seja substituída por outra, de acordo com os critérios legais referidos no C. Penal.
Ac STJ de 15/11/2007, Proc. 3241/07-5, Relator: Cons. Santos Carvalho

sábado, 17 de novembro de 2007

Casa da Supplicação

Declarações de co-arguido - atenuação especial da pena - princípio in dúbio pró reo - poderes do STJ - tóxico-dependência
1 – O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, não pode ter como objecto a questão de facto, cujo apuramento e fixação cabe às instâncias, pois destina-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito, pelo que não podem ser invocados perante ele, como fundamento do recurso, a existência dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
2 – É a posição interessado do arguido, a par de outros intervenientes citados no art. 133.º do CPP, que dita o seu impedimento para depor como testemunha, o que significa que nada obsta a que preste declarações, nomeadamente para se desonerar ou atenuar a sua responsabilidade, o que acarreta que, não sendo meio proibido de prova, as declarações do co-arguido podem e devem ser valoradas no processo, não esquecendo o tribunal a posição que ocupa quem as prestou e as razões que ditaram o impedimento deste artigo.
3 – O art. 133º do CPP apenas proíbe que os arguidos sejam ouvidos como testemunhas uns dos outros, ou seja, que lhes seja tomado depoimento sob juramento, mas não impede que os arguidos de uma mesma infracção possam prestar declarações no exercício do direito, que lhes assiste, de o fazerem em qualquer momento do processo, nada impedindo que o arguido preste declarações sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, ou seja, tanto sobre factos que só ele digam directamente respeito, como sobre factos que respeitem a outros arguidos.
4 – O art. 345º, n.º 4 do CPP, na redacção agora dada pela Lei n.º 48/2007, só afasta a validade das declarações de um co-arguido, como meio de prova, quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, o que não foi o caso.
5 – O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.
6 – Mas, saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista.
7 – A faculdade consagrada no art. 72.º do C. Penal de atenuação especial da pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, representa uma válvula de segurança para situações particulares.
8 – A toxicodependência é susceptível de diminuir o juízo de censura pelo facto concreto, mas de aumentá-lo pela condução da sua vida, pelas opções que foi tomando. Se o problema do recorrente implica que uma menor culpa, dada a menor capacidade de autodeterminação, também é maior o risco de repetição dos comportamentos, o que deve ser atendido.
AcSTJ de 8.11.2007, proc. n.º 3984, Relator: Cons. Simas Santos
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Ministério Público - vista no tribunal superior - modo de vida - burla - atenuação especial da pena
1 - A vista a que se refere o art. 416.º do CPP destina-se a transmitir os autos ao Magistrado que assegura a representação do Ministério Público no tribunal ad quem, mas permite ainda que esse Magistrado se debruce sobre as questões formais que serão objecto de exame preliminar do relator (n.º 3 do art. 417.º) e que exare nos autos o resultado desse exame, lavrando nota sobre a "regularidade" ou sobre a "irregularidade" detectadas.
2 - Permite também que exerça o seu poder-dever de se pronunciar sobre as questões a conhecer em conferência, sejam elas prévias ou incidam sobre o mérito do recurso, podendo ainda antecipar, em relação às alegações, a sua posição sobre o mérito do recurso, emitindo parecer que condense o seu entendimento.
3 - Se entender que devem ser resolvidas questões que não vem colocadas na motivação do recurso, designadamente nas respectivas conclusões, ou que não vem apontadas na resposta a essa motivação, deverá então o Ministério Público indicá-las, nesse visto, com precisão, assim permitindo ao Tribunal ad quem a percepção dessa modificação (art. 417.º, n.ºs 3 e 6) ou orais (art. 423.º, n.º 1).
4 - Desta forma, também os demais sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso e pela posição assumida pelo Ministério Público no Tribunal ad quem serão dela notificados, podendo então responder no prazo de 10 dias (n.º 2 do art. 417.º).
5 – Para que se fale em modo de vida (na burla) o complexo das infracções deve revelar um sistema de vida, como é o caso do ladrão ou do burlão que vivem sem trabalhar, dos proventos dos seus delitos, do que vive à custa das mulheres, dos rufiões, etc.
6 – O art. 72.º do C. Penal ao dispor que o Tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (n.º 1), enumerando o n.º 2 diversas dessas circunstâncias, criou uma válvula de segurança para situações particulares, para situações que escapam ao complexo "corrente e normal" de casos que o legislador teve em consideração quando estabeleceu a moldura penal abstracta correspondente.
7 – Para essas hipóteses em que ocorrem circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, por via da redução sensível da culpa, da ilicitude ou da necessidade da pena, substituiu-se a moldura penal prevista para o facto por outra menos severa.
AcSTJ de 15.11.207, proc. n.º 3279/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
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Proibição da reformatio in pejus - anulação do julgamento - tráfico de droga - correio de droga - medida da pena - perda de veículo automóvel - legitimidade para recorrer - suspensão da execução da pena
1 – Considera-se que integra hoje o processo justo, o processo equitativo, marcadamente conformado, na compreensão e dimensão, pela estrutura acusatória do processo, consagrada constitucionalmente – art. 32°, n.º 5, em que se integram também os recursos, igualmente com matriz constitucional como uma das garantias de defesa – art. 32°, n° 1.
2 – O princípio da acusação, subjacente à estrutura acusatória do processo, impõe que nos casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem necessariamente limitados os parâmetros da decisão, estabelecendo-se com o recurso, em tais casos, uma vinculação intraprocessual, no sentido de que fica futuramente condicionado intraprocessualmente o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido. Nesse caso, a decisão constitui o limite do conhecimento ou da jurisdição do tribunal ad quem, e também por isso mesmo, para obviar à reformatio indirecta, limite à acusação, conformação, rectius, à jurisdição do tribunal de reenvio, nos casos de anulação ou de reenvio, que não pode agravar a posição do arguido.
3 – A esta compreensão do princípio da proibição da reformatio in pejus é indiferente que o arguido tenha (ou também tenha) pedido no recurso a anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal, por se postularem as mesmas razões, sendo que a solução contrária se traduziria em atribuir ao tribunal do reenvio (ou do novo julgamento) poderes que não estavam cometidos ao tribunal de recurso.
4 – Não merece censura, por ser excessiva, a pena de 4 anos e 6 meses de prisão aplicada a um correio de droga que fez entrar em Portugal mais de 5 kgs de heroína.
5 – Não tem legitimidade para recorrer de uma decisão penal que não determina o destino de um automóvel aquele que reconhece não ser o proprietário.
6 – Para que possa ser suspensa a pena de prisão é necessária a formulação de um juízo de prognose social favorável que permita esperar que essa pena de substituição reintegre o agente na sociedade, mas também proteja os bens jurídicos, os fins visados pelas penas (n.º 1 do art. 40.º do C. Penal).
7 – Tratando-se de um transporte significativo de droga, por um correio, postulam-se razões de prevenção geral de intimidação que marcam uma forte presença; sempre que um Estado enfraquece a sua reacção contra tais condutas, logo recrudesce a respectiva prática. E são também fortes as exigências da prevenção geral de integração, neste tipo de crime: tráfico de estupefacientes. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26 de Maio, que aprovou a estratégia nacional de luta contra a droga, fixou como um dos objectivos primordiais o reforço do combate ao tráfico, aliás, como opção estratégica fundamental para Portugal. E acrescentou que «as dramáticas consequências do tenebroso negócio do tráfico ilícito de drogas, empreendido tantas vezes por verdadeiras organizações criminosas, e que atinge não apenas a vida dos jovens mas também a vida das famílias e a saúde e segurança da comunidade, são de tal modo chocantes que se torna um imperativo mobilizar todos os esforços para combater o tráfico com redobrada determinação...No caso de Portugal, esse combate é particularmente difícil em razão da nossa extensa costa marítima, a que se junta a eliminação de controlos fronteiriços internos no quadro do processo de integração europeia».
8 – Assim, a suspensão da execução da pena nos casos de tráfico comum e de tráfico agravado de estupefacientes, em que não se verifiquem razões muito ponderosas, que no caso se não postulam, seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral.
AcSTJ de 15.11.2007, proc. n.º 3761/07-5, Relator: Cons. Simas Santos

Ciência da Legislação

Os eventos recentes relacionados com os Códigos Penal e de Processo Penal justificam que se retome a mensagem do LC sobre a qualidade da lei, o estudo do Senado Francês e se relembre aqui o Editorial do n.º 1 da Legislação, Cadernos de Ciência de Legislação, Abril-Junho 1991:

•A crescente complexidade das sociedades contemporâneas e a iniludível expansão das estruturas e funções do Estado, a par da modificação do papel conferido ao Direito – e à lei em especial – enquanto instrumentos de regulação da vida social, são algumas das razões comummente invocadas para explicar as dificuldades de que se reveste a actividade legislativa na actualidade.

•O reconhecimento dessas dificuldades e a consciência crítica das deficiências e fragilidades dos enquadramentos legais – baixos padrões de qualidade formal e material da legislação («decadência da arte de legislar»), inflação legislativa («mania legislativa»), inaplicação da lei –, concorreram para que, a partir de meados dos anos 70, se iniciasse em alguns países europeus uma reflexão sistemática e global sobre o processo legislativo, desde a fase de criação das normas à sua execução, com o objectivo de assegurar a feitura de leis mais aperfeiçoadas e eficazes.

•Os rápidos progressos entretanto observados nesta área do direito, tanto a nível científico (profusão de estudos, revistas especializadas, seminários, colóquios) como institucional (criação de vários centros de investigação e associações de especialistas), confirmam a sua importância e repercussão crescentes e apontam tendencialmente para a constituição de uma disciplina autónoma – a Ciência de Legislação.

O crime continuado e a revisão do Código Penal ...

O Supremo Tribunal de Justiça tirou recentemente um acórdão em que se pronuncia sobre a interpretação a dar à nova redacção do art. 30.º do Código Penal (crime continuado) e a referência aos bens jurídicos pessoais.
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Vai abaixo sublinhado no sumário:
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Burla - elementos - engano - crime continuado - concurso de infracções - cúmulo jurídico - nulidade da confissão - coacção moral
1 – O crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, sendo seus: (i) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; (ii) por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; (iii) determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
2 – Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são, pois, o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
3 – Ao lado do erro como meio de execução da burla coloca-se também o engano. É necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente pelo agente da infracção; isto é, usando de um meio engenhoso para se enganar ou induzir em erro. Trata-se de uma exigência que acresce a um dolo que já de per si é específico, pois que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo.
4 – A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros.
5 – O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos.
6 – Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. E a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado
7 – Por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima.
8 – O engano a que o art. 217.º, n.º 1, do CP, faz referência, continua a equivaler à mera mentira (a uma mentira pré-ordenada).
9 – Para a comprovação do crime de burla ganha vulto a imprescindibilidade de uma factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois que só a partir da concretização dessas práticas e dos seus cambiantes envolventes, é lícito e possível exprimir um juízo válido e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e, consequentemente, da eficácia frutuosa da relação entre os actos configuradores da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais.
10 – Estando provado que o agente, visando obter quantias indevidas à custa da Direcção Geral de Protecção Social aos Funcionários Públicos e Agentes da Adminstração Pública – ADSE e conhecedor do modo de processamento do pagamento do regime convencionado, congeminou um plano que lhe permitisse, de forma enganosa, levar aqueles serviços a comparticiparem em consultas, exames médicos e tratamentos de fisioterapia que não tinham sido prescritos nem realizados se apropriou de três milhões novecentos e vinte e um mil cento e noventa e oito euros causando à ADSE o equivalente prejuízo, correspondnte ao valor de que se apropriou, estando perfeitamente consciente de toda essa realidade quis actuar da foma descrita com o fim de obter um enriquecimento patrimonial sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei não se inibindo de o levar a cabo, querendo-o, cometeu o crime de burla qualificada.
11 – Há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
12 – O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior (ao agente) das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente. Na existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito».
13 – Dos requisitos do crime continuado resulta também que, tratando-se de bens jurídicos pessoais, não se pode falar, como o exige o n.º 2 do art. 30.º citado, no mesmo bem jurídico, o que afasta então a continuação criminosa, salvo se for o mesmo ofendido. Foi este entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o n.º 3 aditado ao art. 30.º do C. Penal pela Lei n.º 59/2007, quis integrar ao dispor: «o disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentes pessoais».
14 – Pode dizer-se que seria então desnecessário tal aditamento, com o que se concorda. Mas o mesmo não permite a interpretação perversa que já foi apresentada de que daí resultaria a imperatividade do crime continuado quando nos vários crimes fosse sempre a mesma vítima. É que, como se viu, a matriz do crime continuado reside na diminuição considerável da culpa, por razões exógenas e só respeitada essa matriz é que se pode afirmar a ocorrência de crime continuado.
15 – A outra decorrência dos requisitos do crime continuado é a de que, para que se possa falar de diminuição de culpa na formação das decisões criminosas posteriores, é necessário que as mesmas não tenham sido tomadas todas na mesma ocasião.
16 – A circunstância de se verificar a repetição do modus operandi utilizado não permite configurar algum dos índices referidos pela Doutrina, v.g. «a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa». Na verdade, a matéria de facto apurada não permite afirmar que foi a perduração do meio apto que levou ao cometimento de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente, antes se pode afirmar que o esquema de realização do facto foi gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia na maior eficácia em plúrimas ocasiões, o que agrava a responsabilidade criminal.
17 – Nesse caso, o arguido não decidiu cometer novos crimes por dispor do esquema prático de execução que criara, antes está provado que construíu esse esquema para poder cometer múltiplos crimes, o que só por si, afastaria a unificação da sua conduta num crime continuado.
18 – Não há nulidade da confissão por “quase coacção moral” quando o arguido, apercebendo-se do que estava em jogo e, seguramente numa estratégia processual que lhe pareceu mais favorável aos seus interesses, quando se deu conta que seria possível documentar materialmente os seus actos lesivos, do que teve percepção quando se falou em peritos e em confronto com a documentação inserta nos autos, procurou beneficiar de uma confissão integral e sem reservas e se possível de um arrependimento, que procurou construir a partir da declaração da intenção de reparar os prejuízos causados, nunca concretizada.
19 – Hoje em processo penal, no caso de o arguido declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta­lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas (art. 344.º, n.º 1 do CPP), o que aconteceu no caso, ficando resolvido no local e momento próprio, o carácter espontâneo e livre da sua convicção, que obviamente não pode ser abalada com uma tese frágil e insubsistente.
20 – Por outro lado, o que o C. Civil recolhe é a coacção moral no art. 255.º, prescrevendo que se diz feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração (n.º 1), a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro (n.º 2), não constituindo, no entanto, coacção a ameaça do exercício normal de um direito nem o simples temor reverencial (n.º 3). E esclarece no art. 256.º que a declaração negocial extorquida por coacção é anulável, ainda que esta provenha de terceiro; neste caso, porém, é necessário que seja grave o mal e justificado o receio da sua consumação.
AcSTJ de 8.11.2007, proc. n.º 3296/07-5, Relator: Cons. Simas Santos

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

TERTÚLIA


Tertúlia da República do Direito

ABUSOS SEXUAIS: AS CRIANÇAS MENTEM?

com a Profª. Doutora Isabel Marques Alberto
(Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. Coimbra)

Dia 20 de Novembro - 18h
Livraria Coimbra Editora - Coimbra

A Globalização no Humor


Dias 12 de Novembro a 3 de Dezembro na sede (Lisboa) da Caixa Geral de Depósitos.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Ainda a legística...

Dúvida recebida por mail do amigo CM:
No artigo 103.º do CPP (da re-republicação), onde se lê (...) deve ler -se:

«3 - O interrogatório do arguido não pode ser efectuado entre as 0 e as 7 horas, salvo em acto seguido à detenção;
a) Nos casos da alínea a) do n.º 5 do artigo 174.º; ou
b) Quando o próprio arguido o solicite.


Observação: Fica sem se saber se o artigo deve ler-se assim:


«3 - O interrogatório do arguido não pode ser efectuado entre as 0 e as 7 horas, salvo:

a) Em acto seguido à detenção;

b) Nos casos da alínea a) do n.º 5 do artigo 174.º; ou

c) Quando o próprio arguido o solicite.


Ou se, antes, deve ler-se assim:


«3 - O interrogatório do arguido não pode ser efectuado entre as 0 e as 7 horas, salvo, em acto seguido à detenção: a) Nos casos da alínea a) do n.º 5 do artigo 174.º; ou b) Quando o próprio arguido o solicite.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Informação da Sociedade Portuguesa de Criminologia

Conferências e colóquios
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O XV Congresso Internacional de Criminologia decorrerá em Barcelona entre os dias 20 e 25 de Julho de 2008, sob o tema “Crime e Criminologia: investigação e acção”. Todas as informações podem ser obtidas em http://www.worldcongresscriminology.com/.
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Entre 5 e 7 de Março de 2008, o Grupo Suíço de Criminologia realiza em Interlaken um congresso intitulado Nouvelle violence ou nouvelle perception de la violence?. O programa e restantes informações podem ser encontrados em http://www.criminologie.ch/.

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Informações criminológicas
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Informação sobre questões penais e criminologia (publicações, bolsas, conferências e outras) no Arpenter le CHAMP PENAL / / N° 62, de P. Tournier.
*
Arpenter le Champ Pénal. Director da publicação : Pierre V. Tournier, directo de investigação no CNRS, Centre d’histoire sociale du XXe siècle (Université Paris 1 Panthéon Sorbonne). pierre-victor.tournier@wanadoo.fr
A publicação pode ser lida em

In rectificandum... ad aeternum

A Declaração de Rectificação n.º 105/2007 (D.R. n.º 216, Série I de 2007-11-09) da Assembleia da República rectifica a Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, de 26 de Outubro, que rectifica a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que procede à 15.ª alteração e republica o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro.
Parece que vai ser desta que a Novíssima Reforma do CPP pode começar a ser lida.

Maravilhas da Legística...

À consideração da Alliance Française....
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Art. 400.º do Código de Processo Penal, na republicação da Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, de 26 de Outubro:
(...)
«3 — Mesmo que não seja admissível recurso quanto à material penal, pode ser interposto recurso da parte da sentence relative à indemnização civil.»
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Vive la France...
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Teremos rectificação da rectificação?....

Casa da Supplicação

Conselho Superior da Magistratura - deliberação - validade - quórum - livro de lembranças
I - O art.º 156.º, n.º 3, do EMJ, sobre o funcionamento do Plenário do CSM, dispõe que «Para a validade das deliberações exige-se a presença de, pelo menos, 12 membros» (realce nosso).
II - A condição de validade das deliberações tomadas pelo Plenário do CSM é, assim, a presença de 12 dos seus membros e não o sentido de 12 votos, contados conforme posições assumidas anteriormente por algum ou alguns dos seus membros.
III - Se é certo que os Conselheiros não presentes tinham votado um projecto de decisão que não fez vencimento em sessão anterior e indicado desse modo o seu sentido de voto, não votaram o projecto de que resultou a deliberação ora em recurso e nada garante que tal sentido de voto não mudasse perante os novos argumentos invocados.
IV - Não estavam os ausentes, como não estavam os presentes, vinculados a uma determinada posição já votada na sessão anterior e, por isso mesmo, é que o segundo projecto de acórdão foi votado pelos Conselheiros presentes, pois entendeu-se – e bem – que não era suficiente o sentido de voto expressado aquando da votação do projecto derrotado.
V – Sobre a elaboração do acórdão e sua publicação, o art.º 714.º, n.º 1, do CPC dispõe que se não for possível lavrar imediatamente o acórdão, é o resultado do que se decidir publicado, depois de registado num livro de lembranças, que os juízes assinarão.
VI – Ora, o resultado do que se decidiu em 6 de Junho não foi publicado, não foi registado num livro de lembranças (ou equivalente) e os Conselheiros não assinaram qualquer documento que os responsabilizasse pelo dito resultado. Não é possível, assim, considerar que a deliberação foi proferida na sessão de 6 de Junho e o acórdão definitivo foi levado à sessão seguinte, de 10 de Outubro, data em que foi assinado, com procedimento conforme ao disposto nos art.ºs 713.º, n.º 1 e 714.º do CPC, pois no caso não se observaram quaisquer dos requisitos de forma estabelecidos no art.º 714.º, n.º 1, absolutamente imprescindíveis para a respectiva validade.
VII - Daí que se deva dizer que a deliberação de que resultou o Acórdão impugnado só foi tomada no dia 10 de Outubro por dez dos membros do Plenário do CSM, pois eram tantos os que estavam presentes, e a votação só apurou dez votos válidos, pois os outros dois que se apuraram reportavam-se a um outro projecto já votado e não àquele, pelo que tal deliberação enferma de nulidade por falta de quórum, nos termos do art.º 133.º, n.º 2, al. g), do CPA.
AcSTJ de 08/11/2007, Proc. n.º 4674/06 (secção do contencioso), Relator: Cons. Santos Carvalho

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Novo presidente da Eurojust

Por escolha dos seus pares, o Dr. Lopes da Mota acaba de ser eleito presidente do colégio da Eurojust.
Motivo de orgulho para Portugal e para a magistratura do Ministério Público, aqui ficam os nossos parabéns ao escolhido.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Os Serviços de Informações e as escutas telefónicas

Insiste o Ministro da Justiça, com inusitada frequência, em que seja concedida a possibilidade de os Serviços de Informações procederem a escutas telefónicas, para isso se alterando a Constituição da República Portuguesa.
Adianta o argumento de que seremos na Europa a excepção tipo “ovelha negra”, em contrapé com os interesses de protecção da segurança dos Estados contra o terrorismo internacional.
Segundo informação do próprio, o ora Ministro da Administração Interna vem defendendo, porventura desde o tempo em que dirigiu os Serviços de Informações, que estes “procedam à intercepção de comunicações para prevenirem, nomeadamente, a espionagem, o terrorismo e a criminalidade organizada. Os serviços de informações portugueses encontram-se hoje numa situação de manifesta desvantagem em relação à maioria dos seus congéneres estrangeiros por não poderem recorrer a este meio de actuação”.
Fala este governante em maioria; do que o outro governante diz parece que Portugal constitui a excepção. Que estão em sintonia de conteúdo é evidente.

Concorde-se ou não com a alteração constitucional – e não espantará que um dia destes se conclua que afinal nem é necessária -, o que importaria conhecer para já era o regime de escutas dos Serviços de Informações nos outros países da união Europeia, para que todos dispuséssemos da mesma informação e a pudéssemos avaliar.

E de momento a minha inclinação vai no sentido da negativa – mesmo com uma comissão de juízes a autorizar tais escutas cujos resultados acabariam por ficar sob segredo de Estado, que só o Governo desvendaria ou não a seu talante – pois que a tendência securitária nacional parece imparável.
Os riscos não vêm só do terrorismo...

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Maravilhas da Legística...

O artigo 215.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007 de 26 de Outubro, na parte em que republica o Código é a seguinte:

«2 — Os prazos referidos no número anterior são ele­vados, respectivamente, para 6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:
a) Previsto no artigo 299.º, no n.º 1 do artigo 318.º, nos artigos 319.º, 326.º, 331 .º ou no n.º 1 do artigo 333.º do Código Penal e nos artigos 30.º, 79.º e 80.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro (uma vez que os artigos 312.º e 315 .º do Código Penal foram revogados pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro, que os substituiu pelos indicados artigos 30.º, 79.º e 80.º).»

Até agora não viramos ainda uma norma com fundamentação explicativa...

Teremos rectificação da rectificação?....