quinta-feira, 9 de maio de 2013

Mudanças na função pública correm risco de inconstitucionalidade


Inexistência de subsídio de desemprego na mobilidade dos funcionários públicos está entre as questões que ameaçam alterações propostas pelo Governo, alertam especialistas ouvidos pelo PÚBLICO Economia, 14

Mudanças na função pública sob risco de inconstitucionalidade
Alerta foi lançado no Parlamento pelo deputado socialista Pedro Silva Pereira. Técnicos ouvidos pelo PÚBLICO têm dúvidas em relação à inexistência de subsídio de desemprego na questão da mobilidade

Função pública
Raquel Martins

O novo sistema de requalificação proposto para a função pública pode estar “em rota de colisão com a Constituição”. O alerta foi lançado ontem pelo deputado socialista Pedro Silva Pereira, mas advogados e especialistas em direito laboral também receiam que a licença sem vencimento “forçada”, tal como é apresentada, coloque em causa princípios constitucionais como o direito à retribuição e ao emprego.
“O Governo está de novo a entrar em rota de colisão com a Constituição, com os funcionários públicos sujeitos a salário zero e a uma licença forçada sem vencimento”, alertou o deputado do PS durante uma audição parlamentar com o secretário de Estado da Administração Pública, Hélder Rosalino.

Em causa está o novo sistema de requalificação (que substitui a mobilidade especial) que prevê que os funcionários nomeados que passaram para o contrato de trabalho em funções públicas (CTFP) em 2009 apenas possam ficar nessa situação por 18 meses, com cortes no salário que podem chegar aos 33%. Passado este tempo, os trabalhadores serão colocados em licença sem remuneração, mantendo o vínculo ao Estado, ou optar por fazer cessar o contrato, com direito a indemnização.

“Há algum artigo na Constituição que permita à entidade empregadora dizer ao trabalhador: tu continuas ao meu serviço mas eu não te pago?”, ironizou Silva Pereira. O antigo ministro da Presidência de Sócrates considera que a proposta viola o artigo 59.º da Constituição, que determina que todos os trabalhadores “têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”. Hélder Rosalino faz uma leitura diferente e diz que a Constituição remete para o direito à retribuição do trabalho e que estes funcionários não terão funções atribuídas. “Não faz sentido manter funcionários na mobilidade que não estão a trabalhar”, referiu, criticando o modelo de mobilidade especial, criado pelo PS, que permitia que os trabalhadores pedissem licença extraordinária remunerada, que podiam acumular com um emprego no privado.

Também António Monteiro Fernandes, professor de direito laboral, coloca reservas à solução que o Governo propõe e receia que os princípios constitucionais do direito ao emprego e à retribuição possam estar em causa. “Não atribuir retribuição a alguém que mantém o vínculo, privar as pessoas da retribuição sem haver nenhum acordo oferece-me muitas reservas”, realçou em declarações ao PÚBLICO.

Nuno Pais Gomes, especialista em direito laboral e administrativo, afirma que o sistema de requalificação não será mais do que a “antecâmara do despedimento” de funcionários que até aqui estavam protegidos dessa eventualidade.

“Manter o lugar, sem retribuição, é despedimento”, resume. E acrescenta que se está a pôr em causa o espírito da lei dos vínculos (12A/2008), que previa que os trabalhadores com vínculo definitivo que não exerciam funções de soberania passavam automaticamente para o CTFP, mas mantinham os regimes de cessação de contrato e de colocação em mobilidade especial aplicada aos funcionários nomeados.

No sector privado, esta situação não tem paralelo, refere Pedro Furtado Martins, responsável pelo departamento laboral na sociedade de advogados Sérvulo, acrescentando que a licença sem vencimento só é possível a pedido do trabalhador. “No sector privado, a extinção do lugar levaria ao despedimento por extinção de posto de trabalho ou a um despedimento colectivo”, realça, acrescentando que, além da indemnização, o trabalhador teria subsídio de desemprego.

Ora, os funcionários públicos não terão protecção no desemprego, como ontem garantiu o secretário de Estado. Rosalino deixou claro que, no fim de 18 meses em requalificação, “ou entram para uma licença sem vencimento com prioridade de recrutamento” ou então “têm direito a uma indemnização por cessação objectiva de contrato de trabalho e nessa circunstância não tem subsídio de desemprego”.

O problema constitucional pode ganhar força com esta restrição. O professor da Universidade de Coimbra Jorge Leite considera que a inexistência de subsídio de desemprego “conflitua” com o artigo 59.º, que também prevê a assistência material no desemprego a todos os trabalhadores. Um alerta que também é deixado por Monteiro Fernandes Jorge Leite considera que o Governo ainda vai a tempo de legislar nesta matéria, dado que o prazo de garantia para aceder ao subsídio é de 12 meses. Sugestão partilhada por Nuno Pais Gomes que considera que o Governo “podia e devia prever o direito ao subsídio”.

Outro problema que pode surgir tem que ver com a convergência das regras de atribuição de pensões. O Governo ainda não esclareceu se isso afectará apenas os futuros aposentados da Caixa Geral de Aposentações ou as pensões que já estão em pagamento. Caso a medida seja para todos, também aqui o Governo pode ser confrontado com questões de constitucionalidade.

Durante a audição parlamentar, o PCP considerou o novo sistema de requalificação e o programa de rescisões como “o maior despedimento colectivo de sempre”. Já o BE exigiu saber qual o efeito das reformas e das medidas na qualidade dos serviços. Rosalino reconheceu que “a redução de 50 mil funcionários [nos últimos dois anos] não é indiferente aos serviços, que têm que a acomodar”.
 Público, 9-5-2013

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