1. Ainda não me apercebi por completo sobre o que vai o Governo fazer com o grupo de trabalho que parece ter criado de composição bipartida Saúde/Justiça para estudar o tema da distribuição de seringas nas cadeias.
Mas li em Sine Die, da autoria do Dr. Maia Costa, um post que não recolhe a minha inteira concordância. Apesar da consideração que me merece – aliás, por isso mesmo – entendo manifestar um ponto de vista diferente.
Sabemos que os programas de “consumo vigiado”, assim chamados pelo Decreto-Lei n.º 183/2001, de 21 de Junho, para afastar os temores da vulgarizada terminologia de “salas de chuto”, têm como objectivo o incremento da assepsia no consumo intravenoso e consequente diminuição de riscos inerentes, bem como a promoção da proximidade com os consumidores. Devem ser da iniciativa das câmaras municipais ou de entidades particulares cujas finalidades estatutárias incluam a luta contra a toxicodependência, a quem cabe a gestão, e depende a sua criação do Instituto da Droga e da Toxicodependência.
Prevista há mais de quatro anos a hipótese da sua criação o que é certo é que nenhuma autarquia se aventurou em pedi-la, o que dá uma ideia de como o legislador provavelmente estará longe da consistência sobre essa necessidade.
2. Ciclicamente, porém, as mesmas correntes de pensamento tentam voltar sobre o tema. Agora começando pela introdução das seringas nas cadeias, lugar onde era suposto não circular droga e haver um clima de algum modo propício ao convencimento e ao tratamento da toxicodependência. Dir-se-á que se trata da simples distribuição de seringas, mas parece-me óbvio que o passo seguinte seria o do dito “consumo vigiado” – fazer leis é ainda a actividade mais simples neste país.
Nunca consegui vencer esta contradição – como é que em vez de se investir no tratamento dos toxicodependentes identificados e presentes (infelizmente) num mesmo lugar (a cadeia), se procura antes o caminho fácil de tornar asséptico o consumo? E que legitimidade existe para dizer aos guardas prisionais que se empenhem em não deixar entrar nem circular a droga nas cadeias se, paralelamente, se distribuem seringas. Logo nas cadeias?
3. Na sequência do que a Comissão de Estratégia (1998), de que fiz parte, propunha, o Governo (Socialista) de então considerou que a distribuição de seringas nas cadeias era “assunto de especial complexidade e que não se resume apenas a questões de segurança, importa(ndo) estudar as experiências existentes noutros países, bem como as implicações legais dessa solução, tendo em vista uma decisão política sobre a matéria”.
E mais adiante, na Resolução a que me refiro, aconselham-se estudos sobre iniciativas de experimentação social, em especial quanto à instalação de shooting rooms e quanto à administração terapêutica ou controlada de heroína, mas também as relativas à troca de seringas nos estabelecimentos prisionais, de modo a obter uma descrição dessas experiências e a analisar cientificamente a necessidade, a viabilidade e as condicionantes técnicas, económicas e legislativas da sua eventual experimentação em Portugal.
Ignora-se o que está a ser preparado na nova Estratégia e no novo Plano de Acção do Governo.
4. De qualquer modo, se não passa pela cabeça de ninguém defender uma atitude de “baixar os braços”, por exemplo, em face da criminalidade só porque ela se difunde, em face da violência só porque cresce em certos ambientes, da corrupção só porque se estende na razão directa do que não é descoberto, porquê mais este regime de “facilitismo” camuflado de humanismo?
Perdoe-me que lhe diga com alguma crueza, caro Dr. Maia Costa: o seu discurso de arrumar de uma lado a esquerda e do outro a direita porventura conforme concordem ou não com a distribuição de seringas na cadeia parece-me uma linguagem, se é de “esquerda”, perfeitamente ultrapassada. Porque aqui a questão é de encontrar fórmulas com as quais se dê mais um passo na diminuição do tráfico e na recuperação dos toxicodependentes (se possível na prevenção da toxicodependência); na própria AR têm sido obtidos convergências em muitos pontos pela generalidade dos partidos, no Governo ou na oposição.
5. Em minha modesta opinião, acho preferível que se distribua droga sob controlo médico, o que como sabe, nem sequer é proibido pelas convenções. Drogas sob prescrição médica tomamos quase todos os dias. Ponto é que então surjam médicos a assumir, em termos terapêuticos, que há situações em que certas drogas são aconselháveis; que exista a intervenção de eventuais Comissões de Ética e que se proceda a avaliações periódicas dos respectivos efeitos.
Porque o “facilitismo” da transição para um sistema de contra-ordenações da posse e consumo de droga deu no reconhecido aumento de consumidores, com umas Comissões de Dissuasão da Toxicodependência que tardam em assumir um papel útil – há diplomas preparados há mais de uma ano para as reformular tentando torná-las mais eficazes mas que não são enviados à Assembleia da República, sem se perceber porquê.
6. E desculpando-me pelo alongamento do desabafo, gostaria ainda de colocar à sua ponderação o que hoje se passa com o consumo do tabaco. Minimizaram-se os danos do seu consumo, difundiu-se uma publicidade desenfreada, constituíram-se empórios de produção e fabrico para agora se iniciar, sob os auspícios da Organização Mundial de Saúde, um movimento de direito internacional convencional para prevenir o consumo e reduzir os riscos e danos. Via-se proibindo o consumo nos transportes, nas repartições públicas, há-de ser nos restaurantes e por aí fora, fazendo vingar os direitos dos não fumadores e tentando reduzir os danos na saúde dos que fumam.
Sendo muitas das drogas a que agora nos referimos incomparavelmente mais perigosas do que o tabaco, por que não aprender com esta experiência?
Protecção, tratamento do toxicodependente, especialmente na cadeia... claro que sim! Mas não abrir mais brechas numa continuada desresponsabilização.
Mais estudos? – Venham eles.
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